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Sábado, Maio 18, 2024

“Liberdade e independência é o melhor que uma mulher pode ter”

Rosa Jorge, nascida no Bairro do Cerco do Porto há 56 anos, distribui correspondência postal na Cidade Invicta. Entre as várias rotas que cumpre, atravessa a das Escadas dos Guindais. Poucos achariam atrativo subir e descer, várias vezes, aqueles degraus, da beira-rio até à Praça da Batalha. “É cansativo, sim, mas gosto”- diz. E remata com satisfação - “Não trocava por outro trabalho”.

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Rui Paulo Costa
Rui Paulo Costa
Redator e Editor

Foi quase no cimo daquela escadaria medieva, pleno coração da cidade, onde encontrámos Rosa Jorge. Num final de manhã quente e húmido, o sorriso aberto com que nos recebeu, ajudou a esquecer, por meia hora, canícula e cansaço. Uma mulher determinada e muito satisfeita com o trabalho que leva a cabo há já quatro anos.
Aqui nos Guindais, a maior dificuldade é a numeração das casas, que não é seguida. Por exemplo, estamos à beira do 23 e ao lado está o 12. Exige muita atenção.”
E o cansaço, não conta como dificuldade?
Sim, é cansativo. É subir e descer. Mas o mais importante é estarmos atentos para não errarmos o serviço.”
O seu dia de trabalho começa às sete horas, em Baguim do Monte, onde agora reside.
Vou buscar as cartas, organizo-as por ruas e por números e apanho o autocarro para a “baixa”. E entre as três e meia da tarde, quatro horas, tenho tudo entregue. Almoço em meia hora, umas vezes num restaurante, outras vezes trago lanche e é assim o meu dia de trabalho. Esta rota, dos Guindais, é a mais cansativa de todas e a que demora mais tempo a fazer.”
Quando decidiu enveredar por esta profissão, houve quem não augurasse uma permanência longa; tem um problema físico, supostamente, inibidor de bom desempenho.
A minha irmã e eu somos gémeas. Nasci com o pé colado à cabeça dela. Fiz três operações e fiquei bem. Ela também. Quando comecei neste trabalho, não senti que o pé prejudicasse. Gosto do trabalho que faço. Não trocava. Gosto muito da liberdade. Fui assim toda a vida. Acho que independência e liberdade é o melhor que uma mulher pode ter.”
E oportunidades para mudar de emprego não lhe têm faltado. Até porque, a sua formação é noutra área e bem diferente.
“A minha formação é pedicure-manicure. Comecei aos 18 anos no salão de cabeleireira da minha irmã. Ela já me pediu várias vezes para voltar, mas eu prefiro o que faço. Já fiz carteiras, já andei nas limpezas, trabalhei num hotel. E criei cinco filhos -três raparigas e dois rapazes- já quase todos com a vida organizada. E tenho três netos.”

ROSA JORGE 2
Foto:António Proença



                                                                                      Tempos Livres

Uma mulher sempre ocupada. A necessidade e o gosto pelo trabalho ocupam partes iguais na sua vida. Quando lhe falamos de tempos livres, responde-nos com trabalho.
“Quando termino aqui o trabalho tenho sempre uma vizinha ou outra a pedir-me para lhe fazer uma limpeza em casa. Outras vezes, para arranjar as unhas. Vou muito a Miragaia arranjar unhas. Se for lá e perguntar pela Rosinha, todos me conhecem”
E um tempinho livre…
“Se tiver um tempinho livre, vou à praia. Apanho o autocarro, gosto de andar nos transportes públicos e vou até Matosinhos. Aos fins-de-semana, se tiver tempo vou a Lavadores, à praia, com a minha irmã. Mas eu gosto de trabalhar, só peço a Deus que me dê sempre força. Não faço do trabalho uma dor de cabeça. Problema é ter doenças que nos incapacitem, isso é que é mau, o resto…”
Quanto às pessoas com quem contata, e são muitas, pouco tem a dizer. Mesmo assim, prefere a gente humilde dos Guindais à dos prédios.
“Gente boa, aqui nos Guindais. Mas eu dou-me bem com toda a gente. Todos nós temos três lados, o bom, o mau e o mais-ou-menos . É claro, quando me “salta a tampa”, o que é raro, também não deixo nada por dizer. Mas evito ser malcriada.
Uma vez ou outra, lá surge um momento menos bom. O que é perfeitamente normal. Mas Rosa Jorge tem habilidade e maturidade suficientes para saber “sair” de forma positiva.
Por exemplo, um dia destes, a fazer a rota, estava muito calor, cheguei à Rua de Sá da Bandeira extremamente cansada. Entrei num Pronto-a-Vestir e pousei as cartas no balcão com mais força do que o habitual. E essa pancada fez eco. O que, pelos vistos, incomodou a dona do estabelecimento. Não entendeu o meu cansaço e disse que eu era malcriada a atirar assim as cartas para cima da mesa. Já tinha distribuído, naquele dia, mil e tal cartas. Eu disse-lhe que estava tão cansada que nem me apetecia discutir. Há pessoas assim, que não entendem os outros.”

ROSA JORGE 3
Foto: António Proença



                                                                                             João Pinto

Rosa Jorge nasceu no “Cerco do Porto”, mas foi criada no Bairro do Falcão.
“Foi o meu pai que inaugurou o Bairro do Falcão. Até lhe deu o nome.”
Por aí ter sido criada, teve um vizinho que, estavam todos longe de imaginar naquela época, veio a tornar-se muito famoso.
“Os primeiros três moradores do Bairro do Falcão foram o meu pai, o avô dos “Santamaria” e o avô do João Pinto, o do Boavista e do Benfica. Eu ainda ajudei a criar o João. O apelido dele era “velhote” e foi o meu pai quem lho pôs. O meu pai era uma pessoa muito divertida e gostava de andar a falar com a “canalha”. E dava-lhes apelidos. Como ao João Pinto, em miúdo, caíram-lhe os dentes todos, o meu pai chamava-lhe “velhote”. Ele não gostava, ficava zangado e, lá de baixo, do Bairro, fartava-se de o insultar “– conta-nos entre sorrisos.
Assim é a força de uma mulher do Porto. Entre 700 e mil cartas distribuídas por dia e muitos quilómetros nas pernas num constante sobe e desce, tem tempo para os afetos e sorrisos. Contrariamente a muitos, adora os turistas e a confusão das ruas. E, às vezes, para trocar as voltas às amarguras – mais uma hora de trabalho quando a distribuição não está completa às três e meia da tarde. Faça chuva ou faça sol.

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