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Terça-feira, Novembro 5, 2024

Angeiras: histórias e tradições entre a terra e o mar – Por Maria João Coelho

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Maria João Coelho
Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa

Numa manhã de outono amena, ainda com sabor a Verão e, numa tentativa forçada de despedida das sardinhas desta época com alguns amigos, alcançámos Angeiras com a esperança de finalmente visitar os tanques romanos. Perdi a conta às vezes que já estive em Angeiras, Matosinhos. Aqui em casa, há mais de uma década que somos clientes do seu afamado mercado de peixe e, como dizemos em família, o meu marido tem por lá uma fornecedora especial de percebes, enquanto eu guardo boas memórias de encontros felizes com gente de fibra, como aquele em que me perdi à conversa com um velho pescador no passeio da praia dos pescadores e acabei a receber um saco de caranguejos. Sempre estive mais atenta às pessoas, e talvez por isso, ou porque não era um verdadeiro propósito, nunca tinha até hoje visitado os tanques romanos.

Em boa hora entrámos no núcleo museológico da Casa do Mar, pois, fomos recebidos por Fernando Martinho, Presidente da Associação de Nadadores Salvadores “Patrão de Salva Vidas Ezequiel da Silva Seabra” e neto daquele que esteve na origem desta história, uma vez que foi Ezequiel da Silva Seabra que, no final do verão de 1965, após as marés vivas colocarem a descoberto os tanques os descobriu numa ronda habitual pelo areal.

Nucleo Museologico
núcleo museológico da Casa do Mar
Fotografia: Carlos Vilar

Embora o Padre Francisco Ramas nos anos 40 tivesse já referido a descoberta de um tanque retangular de granito coberto por várias camadas de areia, só após o achado do Patrão de Salva Vidas é que Fernando Lanhas e D. Domingos Brandão investigaram a descoberta do primeiro conjunto de tanques e conseguiram que os mesmos fossem classificados como Monumento Nacional em 1970. Não podíamos ter encontrado melhor guia e anfitrião da Casa do Mar que, de imediato, nos começou a mostrar todo o espaço expositivo e a explicar as funções de uma panóplia de utensílios ligados à história deste lugar, abrindo-nos ao mundo das suas memórias e histórias.

E, por falar em histórias, estava longe de imaginar que iria encontrar na faina uma relação tão íntima com a filosofia. Depressa, Fernando Martinho começou a desenhar uma rede que ligava bolsas de sereia a lâmpadas de Aristóteles e ao teorema de Tales. Precisamos, porém, de desfiar esta meada mais lentamente para se tornar inteligível esta sabedoria secular.

A última das comunidades piscatórias de Matosinhos, geograficamente falando, mas também a mais resiliente pela sua teimosia em manter a pesca tradicional – Angeiras, é desde a sua fundação um núcleo hibrido, um misto de comunidade agromarítima, unindo a terra ao mar. No dizer das suas gentes há Angeiras de cima, a parte alta ligada desde sempre à agricultura e com ela a uma das suas tradições fundacional – a apanha do sargaço.

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Praia de Angeiras
Fotografia: Carlos Vilar

Os Sargaços, esse ouro vindo do mar e que, fertilizava as terras aumentando prosperamente o seu rendimento. Muito antes dos nocivos químicos, no tempo em que o engenho fazia a arte e, a sustentabilidade inconsciente descobrira fertilizantes orgânicos e unia as famílias na busca de sustento. E desse tempo dos sargaceiros, ilustrando a sua importância económica, Fernando Martinho contou-nos que nessa altura, os sargaços eram mais importantes que as missas.

Parece-me deliciosa a visão que a minha imaginação logo cogitou, perante a história da fuga dos moços do mar que, abandonavam a missa assim que alguém avisava que havia sargaços na praia. Não é difícil imaginar os homens do mar a saírem da Igreja a correr em direção ao areal para apanharem os sargaços e, no altar o padre a resmungar. Nas palavras do nosso anfitrião, Fernando Martinho, o caso era de tal forma comum e preocupante que o Bispo do Porto ordenou que houvesse olheiros a vigiar os olheiros dos sargaços para que não houvesse saídas em pleno ato litúrgico! Aquilo que alguns documentos referem como as “visitações”, feitas por pessoas consideradas pela Igreja autoridades de fiscalização dos paroquianos, incumbidas de fazer cumprir os deveres de assiduidade às missas.

Mas, voltemos à casa do Mar onde nos reunimos com o nosso anfitrião. É uma antiga casa que servia de arrecadação para os barcos, os utensílios da faina do mar e as alfaias agrícolas ou para os utensílios da apanha do sargaço. Fernando Martinho rapidamente resumiu este processo, que teve na origem da sua recuperação e reabilitação, jovens alemães ao abrigo de programas comunitários com a colaboração da Cooperativa dos Pedreiros do Porto, sob coordenação de Joel Cleto através do Gabinete de Arqueologia e História da Câmara Municipal de Matosinhos. No seio deste pequeno, mas rico espaço expositivo, Fernando Martinho não se fez rogado à nossa curiosidade, explicando cada nicho de conchas, vieiras, búzios, beijinhos, seixos…tudo recolhido ali no areal e, devidamente preservado para que as novas gerações possam continuar a admirar a beleza daquilo que o mar guarda.

Foi nesse momento que Fernando, segurando na mão uma bonita carapaça de ouriço do mar, em tons roxo e violeta, iniciou a narrativa sobre a lanterna de Aristóteles, esse potente aparelho digestivo dos equinóides (ouriços), com forma pentagonal que permite que se alimentem raspando o substrato com uma estrutura raspadora complexa denominada lanterna de Aristóteles, dada a sua semelhança de formato com as lanternas da altura.

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Carapaça de ouriço do mar
Fotografia: Carlos Vieira

Do outro lado, encontram-se vários objetos que fizeram parte do “modos vivendi” de tempos passados desta comunidade de pescadores: alfaias da faina, como redes ou cabazes, belos covos de variadas cores, trajes e outras peças que atestam um quotidiano que foi evoluindo também no processo da faina e da agricultura.

Objectos dentoro do NMCM
Fernando Martinho, Presidente da Associação de Nadadores Salvadores “Patrão de Salva Vidas Ezequiel da Silva Seabra”
Fotografia: Carlos Vilar

Os tanques romanos esperavam-nos lá fora. Tivemos sorte com o tempo e a maré e pudemos apreciar os verdadeiros tanques escavados nas rochas. Ao que tudo indica serviriam para salgar peixe e talvez por isso, escondida novamente pelas areias, mas nas proximidades se encontrem os vestígios daquilo que outrora poderá ter sido uma salina. Estes vestígios arqueológicos, em conjunto, parecem corroborar a tese defendida por especialistas, que, independentemente da certeza face às suas funções efetivas confirmam a presença do domínio romano nestas terras entre os sécs. II e IV d. C.

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Tanques romanos
Fotografia: Carlos Vilar

Fernando Martinho e seus camaradas pescadores orgulham-se da sua condição e diz o mesmo que, ainda hoje, apesar da idade, continuam a ser salva vidas. Hábil e nobre a forma como escapavam ao serviço militar e, consequentemente, à guerra antes do 25 de Abril. Tornavam-se nadadores salva vidas e, dessa forma salvavam inclusivamente a sua vida. Não é de surpreender que nesta comunidade a maioria dos seus homens tenham sido salva vidas.

Fomos caminhando com o nosso cicerone, ao encontro de um dos seus amigos pelos passadiços, o “Nando” que fez toda a sua vida no mar. Antes do 25 de abril, escusado será dizer que também era salva vidas, logo a seguir ia pescar até Espinho, pesca à linha, sardinhas e robalos. Hoje, frente ao seu barco “Rumo à liberdade Portugal” diz que em boa hora, há quase trinta anos, mudou para a pesca ao polvo. E orgulhoso confessou-nos que nesta noite tinha pescado mais de uma centena de quilos de Polvo. Embora já não use os tradicionais e coloridos covos, hoje recolheu cerca de 500 alcatruzes, que em linguagem comum são potes. Quando quisemos saber do modo como se orientavam em alto mar e como sabiam qual o melhor sítio para pescar, percebemos que a pesca tradicional soube aplicar o melhor das novas tecnologias. Os barcos agora têm dois motores, sonares e gps. Bem longe vão os tempos em que se orientavam articulando as boias com o recurso ao Teorema de Tales.

Pescador casas do mar
“Nando”
Fotografia: Carlos Vilar

Os passadiços marítimos atravessam a praia dos pescadores e, por muito atascado que esteja o caminho com todos os utensílios da faina, os lobos do mar continuam as suas lides um pouco indiferentes aos turistas, aos peregrinos e aos ciclistas que por ali passam. Mas, aqueles que quiserem ouvir boas histórias e por ali se demorarem um pouco mais, encontrarão sempre alguém disposto a conversar, desfiando memórias.

Vale a pena a paragem entre o colorido das casas do mar e o areal com os barcos alinhados, rodeados de redes, covos, cestos, camaroeiros, alcatruzes, boias …um autêntico tesouro etnográfico vivo espalhado pela praia á espera de um olhar contemplativo!
Ainda que, com tarefas e funções distintas, nesta comunidade todos os elementos da família tinham o seu papel. E, com as devidas mudanças temporais e as novas configurações socioeconómicas, é bem visível ainda hoje a diferenciação de papéis por género. Se na praia dos pescadores, a chegada dos barcos permite visualizar a faina masculina, a labuta dos patrões, dos mestres e dos moços de mar que chegam com o peixe e o levam para terra, limpam e preparam os barcos, puxam-nos para terra com tratores… já no mercado são as mulheres, as peixeiras, aquelas cuja incumbência é a venda do produto. Nos restaurantes, na lota, denota-se a partilha indiferenciada nas tarefas, e, em certos momentos percebe-se que durante o dia são os casais mais velhos que, na sua cumplicidade, dão continuidade à linhagem da comunidade.

Os mais novos estão na escola ou então, já formados, rumaram à cidade onde realizam os sonhos de exercer outras profissões. O “Nando”, homem do mar, sabe bem isso, o filho tem outras responsabilidades, não lhe seguirá os passos, para ele a pesca é desportiva.

Em outros tempos havia mais barcos e bulício! O tempo não perdoa! O mar cada vez dá menos e tem levado várias vidas. Os que perduram e continuam estão mais velhos, os novos procuram formas de sustento mais fáceis e mais certas . Angeiras persiste e reinventa-se com o quarteirão dos restaurantes, novas empresas turísticas que proporcionam excursões marítimas e explorações subaquáticas, explorações arqueológicas em busca dos vestígios romanos.

Não esquecer que, ao largo continua afundado o submarino alemão – um U-1277 , uma das histórias do imaginário coletivo desta comunidade que encontra sempre formas de trazer o seu passado para o presente e assim ampliar e projetar o futuro!

Sargaceiros e pescadores não diferem na sua coragem e esperança. Com formas diferentes ambos aguardam do mar uma boa mareada, têm no seu ADN a resiliência. E nos rostos destes habitantes de Angeiras, continuam bem patentes as cores, os traços e as rugas de tempos vividos em comunhão com o sol e o mar.

Não podíamos ter terminado a manhã sem nos sentarmos à mesa. Por aqui, os restaurantes não são muitos, mas são todos bons, tornando difícil a escolha. O melhor é sempre voltar e ir experimentando cada um. Optámos pelo restaurante Maioral, e não nos arrependemos, pois, as sardinhas sabiam a marisco ou não estivéssemos na casa de Pescadores!

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Sardinhas – Restaurante Maioral
Fotografia: Carlos Vilar
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