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Domingo, Março 16, 2025

Tragédias, bolos de coco e envenenamentos – uma forma de pensar a justiça a partir do “Museu do Conflito”

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Maria João Coelho
Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa

O conflito, como bem sabemos, é sempre uma luta entre forças opostas, resulta de uma situação de antagonismos ou de incompatibilidades. Todos nós experienciamos inúmeros conflitos ao longo da vida, sejam pessoais e internos, sejam interpessoais. Desde as situações mais simples às mais complexas, já todos vivemos conflitos perante escolhas ou alternativas que nos poderiam parecer incompatíveis inicialmente.

Quantas vezes já não tivemos de decidir logo de manhã o que vestir e estivemos perante indecisões?! Ou perante um menu no restaurante tivemos de pensar longamente na opção do prato a escolher?! E quantas vezes entrámos na cozinha sem saber o que confecionar para o almoço?! E se resolvemos facilmente estes conflitos, outros há ou houve que nos tiram o sono ou, pelo menos, algumas horas de reflexão.

Há conflitos familiares, sociais, laborais…uns vividos mais intensamente outros de forma mais morosa e, há outros ainda que só são ultrapassáveis e resolúveis devido a um terceiro, um mediador.

Os conflitos são inerentes à natureza humana. O importante é saber resolvê-los e aprender com eles. Geridos de forma correta, os conflitos podem ser molas propulsoras de mudança. Quer as histórias individuais, quer as das organizações ou mesmo das cidades contém e constroem-se sobre conflitos. Todas as comunidades e povos tiveram origem em acontecimentos fundadores violentos e traumáticos, os quais abriram feridas na memória coletiva.

A cidade do Porto não é diferente. Talvez por isso, faça todo o sentido o seu mais recente Museu ser precisamente o Museu do Conflito, tutelado pelo Tribunal da Relação do Porto. Falemos, pois, deste museu, cuja entrada se faz através da história dos conflitos subjacentes às mudanças desta urbe.

Hall de entrada do Museu dos Conflitos Fotografia de Beatriz Pereira
Hall de entrada do Museu dos Conflitos
Fotografia de Beatriz Pereira

Mas precisamos ainda de dar um passo atrás para nos determos numa leitura triádica do que irrompe no seu “hall” de entrada. De um lado, temos a Justiça divina simbolizada por várias figuras religiosas bastante importantes para a cidade do Porto e, do outro lado, temos a justiça dos homens assente no Direito, o qual deriva das virtudes cardeais apresentadas por Platão. O filósofo fala delas pela primeira vez no seu diálogo “Górgias”, antes mesmo de as aprofundar em “A República”, a sua obra sobre uma sociedade ideal justa e boa.

As quatro virtudes a saber são: sabedoria, coragem, temperança e justiça. E no cimo do pórtico, destaca-se o logotipo do Museu, o qual simboliza o compromisso. Compromisso patente num aperto de mão, a lembrar a cordial saudação e para além dela, a força da palavra dada, que em tempos idos tinha valor de promessa e deveria ser honrada. Este conceito é-me muito caro, por várias razões, entre as quais, por ser frágil, difícil e desafiante. Mas é, sem dúvida, o único caminho que em conjunto nos pode conduzir a uma sociedade mais justa.

Entendida a arte como imitação, a tragédia tal como para os gregos tinha função de educar e moldar o caráter dos cidadãos, deve continuar a suscitar em nós múltiplas interpretações. A tragédia pode instruir a nossa reflexão ética e ajudar-nos a (re)orientar as nossas ações através da construção de cenários de compromisso que tenham por horizonte a bondade comum.

A este propósito ocorre-me a tragédia grega de Ésquilo: “Prometeu Agrilhoado”. Este mito mostra-nos como um conflito entre Deuses resultou num enorme benefício para o Homem. De modo sintético, pode referir-se que o mito de Prometeu, tal como é relatado pelo poeta trágico, invoca uma situação em que o titã tenta ludibriar Zeus, dando-lhe a escolher entre um monte de ossos disfarçados com gordura e um monte de carne escondida sob as peles. Zeus escolheu o primeiro monte e, ao sentir-se enganado, roubou o fogo aos mortais. Ora, Prometeu insurgindo-se contra a injustiça do castigo, devolveu o fogo aos homens. Este ato de enorme nobreza de caráter por parte de Prometeu encolerizou a tal ponto Zeus que este o agrilhoou a um penhasco onde, diariamente, uma águia lhe devorava partes da carne.

Vários poetas e escritores têm feito referência a Prometeu e ao simbolismo do seu ato. E, neste âmbito, Miguel Torga em Diário IX reforça sobre Prometeu: «Autor, ator e espectador, acabo por encarar toda a tragédia da espécie humana no palco da consciência: Prometeu, com o fogo roubado aos deuses nas mãos orgulhosas, roído pela águia do seu íntimo terror…»
Porque falamos de tragédias, a maior tragédia do Porto é conhecida como desastre da ponte das Barcas, e os milhares de vítimas que em fuga às tropas francesas comandadas por Soult pereceram no rio Douro, não são esquecidas no friso cronológico que, neste museu, conta a história da cidade.

Pintura a retratar a Tragedia da Ponte das Barcas Fotografia de Beatriz Pereira
Pintura a retratar a Tragédia da Ponte das Barcas
Fotografia de Beatriz Pereira

No entanto, foi o processo do crime da Rua das Flores, do Porto, que despertou o meu interesse. E sublinho, a tragédia da Rua das Flores do Porto, pois, também a rua com o mesmo nome, mas em Lisboa, está associada a outra tragédia.
A tragédia da Rua das Flores envolve um médico amigo do escritor Camilo Castelo Branco e constitui o primeiro caso médico-legal português.

Vicente Urbino de Freitas, médico formado em Coimbra e nascido no seio de uma família abastada da Rua das Flores, no mesmo ano em que se torna professor da Escola Médico- Cirúrgica do Porto casa-se com Maria das Dores Basto de Sampaio, sua vizinha e filha de um dos mais ricos comerciantes de Linhos do Porto, António Sampaio. Esta poderia ter sido uma história de Amor de fim do séc. XIX, qual conto de fadas entre dois jovens vizinhos burgueses. E se a história é de amor incondicional, pelo menos da parte de Maria das Dores em relação a Urbino, é também uma história de tragédia envolta em polémica, crimes, ciúmes, ódio, heranças e … dores, como o nome de Maria.

É que após o casamento sucederam-se vários casos de envenenamento de familiares de Maria das Dores, os quais envolveram diretamente Urbino de Freitas. Primeiro, foi o cunhado, José Sampaio, que no Natal de 1889, já viúvo, terá vindo ao Porto para pedir a bênção dos pais para novo casamento. Urbino terá sido chamado pelo próprio numa tentativa de o ajudar, quando o mesmo se encontrava hospedado e já adoentado no antigo Grande Hotel de Paris, onde viria a falecer.

Após o seu falecimento, Urbino não se livrou da acusação de o ter envenenado com morfina e seus derivados… Mas foi o envenenamento dos sobrinhos que levou a sogra, Maria Carolina, a levantar-lhe um processo-crime.

Para compreendermos melhor este fatídico enredo, acrescente-se que, os dois sobrinhos de Urbino, filhos do cunhado Guilherme – Mário e Maria Augusta – viviam já com os avós e, após a morte de José Sampaio, também a sua filha Berta passou a residir no Porto com os avós, na casa da Rua das Flores.

Ora, por altura da Páscoa de 1990, terá chegado uma encomenda de remetente desconhecido, contendo amêndoas e bolos de coco com chocolate. Lambarices que fariam as delícias de qualquer criança, por isso, a avó e os três netos acabaram por comer os doces. Ficaram todos agoniados e indispostos. Perante este quadro, a avó mandou dar às crianças sais de frutos e chamou o seu genro, Urbino de Freitas, que lhes receitou clisteres de cidreira, com a recomendação de os susterem o máximo de tempo possível no intestino.

As meninas, desobedecendo a tais orientações, expeliram de imediato o remédio, só Mário seguiu a prescrição do tio à risca. E, tal como o tio José Sampaio, viria a sucumbir em agonia com vómitos “sanguíneos”. É então que Urbino é acusado dos crimes. O caso passa para os meios de comunicação social e, no Porto, o crime da Rua das Flores começa a ganhar o interesse da população que, revoltada, manifesta-se em massa no Tribunal de S. João Novo, apelando justiça. O Ministério Público, após vários recursos e relatórios toxicológicos, iliba Urbino de Freitas da morte de José Sampaio e do envenenamento das sobrinhas e da avó, mas considera-o culpado da morte do sobrinho Mário.

Uma tragédia que pelo seu enredo já deu um filme, vários livros e que continua a ser investigada e estudada. Urbino foi considerado culpado da morte do seu sobrinho, Mário Sampaio, de 14 anos. Em tribunal, foi condenado a oito anos de prisão e ao degredo de 20 anos, em Angola e no Brasil. “Que a justiça humana receba da justiça divina um raio de luz que chegue ao seu abismo” escreveu o seu amigo Camilo Castelo Branco em carta dirigida ao médico, após ter tido conhecimento da sentença.

Os factos revelados em tribunal, na altura pareciam irrefutáveis; porém, esta tragédia não deixa de suscitar dúvidas. Já na época, houve famosos peritos de Coimbra e do estrangeiro que questionaram os exames toxicológicos apresentados em tribunal; a imparcialidade do Delegado do Ministério público – Pestana da Silva, podia ser questionável devido ao facto de o mesmo ter sido preterido por Maria das Dores ao casar com o médico e, na altura, houve quem defendesse que o seu interesse pelo caso era movido por ciúmes.

Por outro lado, se o motivo dos crimes parecia ser a herança da mulher, que Urbino assim receberia uma vez que Maria das Dores seria mais tarde a única herdeira, é preciso não esquecer que o médico era também, ele próprio, herdeiro de grande fortuna familiar e, por ser famoso e prestigiado, ganhava bastante dinheiro. Certo é que Urbino de Freitas gastou todo o dinheiro que tinha a tentar provar a sua inocência e a sua mulher manteve-se até ao último dos seus dias inabalável na fé da sua inocência.

Neste contexto, a culpabilidade de Urbino de Freitas provada à data do seu julgamento, suscita atualmente inúmeras questões: será que à época o estado da ciência e as ferramentas utilizadas em toxicologia poderiam ter conduzido a resultados inconclusivos? Será que os ciúmes do Delegado do Ministério Público condicionaram a sua tomada de decisão? Poderá ter sido uma infeliz coincidência ou uma fatalidade que colocou Urbino de Freitas na equação e o fez estar presente em ambas as situações que originaram as mortes?

Pensar sobre estas tragédias é também uma forma de pensar a justiça. Os conflitos devem fazer-nos refletir continuamente, porque somos seres históricos, de carne e osso, com um passado e com a consciência de que esse legado e as tradições devem ser interpretados, debatidos, discutidos.

Estatua da Justica de Leopoldo de Almeida
Estátua da Justiça de Leopoldo de Almeida
Fotografia de Beatriz Pereira

A justiça constrói-se em sociedade e adquire-se através das aprendizagens, dos hábitos, das relações sociais. Pensar a justiça…é pensar nas possibilidades de conciliação entre o que é singular e individual e, aquilo que é universal; entre a existência concreta e o universalismo moral procurando atender às especificidades de cada situação, de cada pessoa, de cada grupo. É das pontes e dos consensos, encontrados caso a caso, que se amenizam os conflitos e se concretiza a ideia de justiça.

E é a ideia de justiça enquanto projeto a alcançar que nos abre o futuro em esperança.
A força da confiança na justiça e a esperança numa sociedade cada vez melhor e mais justa é que nos devem incitar a refletir, contínua e permanentemente, sobre a magnitude do ser humano como ser que age e sofre.

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