Com seis meses, Miguel já passava os dias na livraria, numa alcofa que era colocada pela mãe num cadeirão atrás do pequeno balcão, e aos seis anos, mesmo antes de saber ler, já organizava livros na cave, uma organização feita por editoras.
Para Miguel os clientes são amigos. Alguns, vêm do tempo da avó e até da bisavó. São os amigos da casa, e é com eles que Miguel Carneiro tem ao longo do tempo aprendido bastante. Foi o Amor pelos livros e pelo conhecimento que o fez, depois de terminado o 12º ano, abraçar o projeto familiar a tempo inteiro. Miguel sublinha ” foi mesmo o desejo, uma vocação, porque no fim 12º segundo ano fiquei aqui a trabalhar com a minha avó. Ela já tinha uma idade avançada e decidi ficar aqui a trabalhar. Uma escolha por vontade própria, pelo gosto e amor aos livros e pelo gosto de conversar com as pessoas bem como pelo conhecimento que com elas adquiria”.
História
Falamos de um dos mais antigos alfarrabistas do Porto, A Moreira da Costa – Livreiros antiquários, fundada por José Moreira da Costa em 1902 na antiga Travessa da Fábrica, um espaço muito próximo da atual Livraria. O seu fundador era trisavô do atual proprietário Miguel Carneiro. José da Costa foi caixeiro de Ernesto Chardron, o primeiro editor de Camilo Castelo Branco, por isso não nos surpreenderia se tivesse conhecido o escritor e daí cultivasse admiração pelo mais polémico escritor Portuense de adoção.
Mas de Camilo falaremos um pouco mais à frente. Voltemos ao berço desta livraria, que num anúncio que tivemos oportunidade de visualizar anunciava “compra e venda de livros em todas as línguas […] um completo sortido de livros escolares adotados em todos os estabelecimentos de instrução, romances, poesias, viagens, religião, direito…”.
O anúncio ilustrado foi publicado em julho de 1908, no segundo número do periódico “O Tripeiro” que surgiu nesse mesmo ano. O Tripeiro foi idealizado, em plena efervescência republicana, por Alfredo Ferreira de Faria como «repositório de notícias portucalenses antigas e modernas» perpetuador da vida cultural, patrimonial, social e da história da cidade do Porto. Refira-se a este propósito, que a Moreira da Costa foi desde o primeiro número, a fiel depositária desta publicação.
Tertúlias, “A Infanta Capelista” e o prestígio da primeira livreira Portuense – Elisa Dias
Após o falecimento do seu fundador, o estabelecimento passou para a sua única filha, Elisa Duarte da Costa Ferreira Dias – a primeira livreira da cidade do Porto. Em 1927 foi com ela que o estabelecimento passou para a atual localização, bem no centro da Rua de Avis, no número 30 de um prédio emblemático com traça modernista.
Elisa alterou a designação da livraria para Moreira da Costa (Filha), a qual se mantém nos letreiros originais colocados sobre cada uma das duas montras. Livreira com grande conhecimento sobre livros e muito prestigiada no meio, tornou a sua livraria num dos centros culturais e literários de referência do Porto, frequentada por muitos escritores e camilianistas. As suas tertúlias, que ocorriam de forma espontânea eram uma constante. Durante as décadas de 40, 50 e 60 do século passado, as tertúlias eram bastante concorridas “Aqui começava-se a conversar sobre um assunto, que poderia ser política e poderia acabar-se a falar de futebol.” Perante a nossa curiosidade em querermos saber que pessoas vinham aqui para as tertúlias, Miguel Carneiro respondeu com orgulho: “Muitas pessoas, muitas mesmo, o escritor Vitorino Nemésio, o poeta Pedro Homem de Mello, o historiador Eugénio Cunha e Freitas e uma série de camilianos”.
A Infanta Capelista
A propósito das tertúlias, Miguel Carneiro contou-nos que as mesmas, decorriam na parte central da loja onde existiam dois cadeirões, um de cada lado e que aí se sentavam os intelectuais e amantes da literatura a discutir os mais variados assuntos, desde política, vida da cidade, futebol, decisões camarárias e claro, literatura.
No quinquagésimo aniversário da Livraria, a sua bisavó Elisa, bastante influenciada pela “tribo crescente de camilianistas” frequentadores do seu estabelecimento em busca das suas obras, lembrou-se de fazer uma edição fac-similada de “A Infanta Capelista” obra de Camilo Castelo Branco que terá sido mandada destruir pelo próprio quando estava a ser impressa na tipografia.
O motivo de tal destruição, teve na origem um título nobiliárquico, pois, o escritor esperava que a visita de D. Pedro, Imperador do Brasil, em 1872 lhe trouxesse a tão desejada atribuição do título de Visconde.
O culto de Camilo na cidade do Porto foi sempre uma constante, porém, nos anos 50 e 60 encontrava-se no seu apogeu na Moreira da Costa, contribuindo para a fama e glória da própria livraria. Ora, foi neste contexto, que a livreira portuense obteve um volume dessa obra, graças a um dos frequentadores das tertúlias, Henrique Rodrigues Vieira, que foi quem a incentivou a fazer a edição fac-similada. Visando agradar aos seus ilustres clientes camilianistas Elisa mandou imprimir a edição fac-similada, porém, como não pediu autorização aos herdeiros do escritor, acabou por ver contra si movido um processo pela neta de Camilo – “Processo Correcional por contrafeição de obra literária de Camilo Castelo Branco”. Aquele que hoje, é considerado o primeiro processo-crime por direitos de autor.
Mas, se por um lado, a edição ilegal custou a D. Elisa uma condenação e uma multa, tal como é atestado no texto referente ao emblemático processo do Tribunal da Relação do Porto “ foi condenada a pena de 6 meses de prisão, substituída por multa e nas custas e ainda na indemnização de 18.500$00 ( cerca de 7.150€ na atualidade) a favor de quem mostre ser proprietário da obra”. Por outro lado, a referida edição fac-similada tornou-se pela sua raridade – só foram impressos 50 exemplares, bastante valiosa.
Amor pelos livros e os tesouros guardados na Cave
Em 1965, a livraria passou da D. Elisa para as mãos da sua filha Maria Elisa Ferreira Dias Gonçalves que ainda em vida, em 1987, fundou uma sociedade entre a sua filha – Isabel Dias Gonçalves Carneiro, o marido desta, seu genro – Ângelo César Carneiro e o outro filho – Rui Manuel Gonçalves. Em 1999, Miguel Carneiro comprou a quota do tio Rui Gonçalves e tornou-se coproprietário com os seus pais.
Se a vida de Miguel Carneiro e da Moreira da Costa se transformasse em livro, na senda da íntima ligação entre a livraria e o escritor Camilo Castelo Branco, poderia ter como título “Amor e Conhecimento aos livros”. Porque este legado familiar, a existência centenária desta casa deve-se, primeiramente, ao enorme amor aos livros. Um amor cultivado no aconchego das conversas e das histórias entretecidas durante longas horas, entre os familiares – desde o trisavô até si, passando pela bisavó, avó e pais – mas também amadurecido com as conversas, confidências e interesses literários dos vários clientes. Histórias a partir dos livros, num folhear cuidado de cada página, de cada capa, para não lhe perturbar a alma…
Os livros estão predestinados a ter várias vidas. E no interior deste alfarrabista não restam dúvidas sobre essas vidas. Por baixo do piso térreo da Moreira da Costa encontra-se o seu maior tesouro, o âmago deste amor. São mais de 30 mil exemplares que se erguem em torres de conhecimento, num tom maioritariamente acastanhado com lombadas e tamanhos diversificados. Há livros a forrar literalmente a cave, do chão ao teto, em pilhas mais alinhadas ou de forma mais amontoada.
Descer à cave da livraria, é um privilégio, não acessível ao público em geral. É iniciar uma viagem interminável pela literatura e conhecimento intergeracional sob a forma de livro. Há de tudo um pouco, desde obras de teologia, filosofia, direito, história…literatura francesa, inglesa e até edições em Latim! Olhar para estes livros empilhados ou alinhados, uns mais organizados outros completamente enleados em confusa vizinhança, é também perceber as suas vidas e as dos seus sucessivos proprietários.
O tempo envelhece os livros. Os livros têm um odor muito peculiar. Ao descermos à cave da Moreira da Costa o cheiro dos livros revela um certo envelhecimento… compostos orgânicos familiares: pinho, amêndoa, eucalipto e flores silvestres. Um mundo de sentidos a aguçar a curiosidade. A Cave revela-se como uma fortaleza de livros que apetece descobrir, sentir. Miguel Carneiro continua diariamente a descobrir livros por aqui…um tesouro acumulado por cinco gerações.
Felizmente os livros têm sobrevivido. Mesmo perante a era digital há sempre quem prefira o livro em papel. Por vezes é uma escolha inconsciente. Pode ser pelo prazer de folhear, pela ligação afetiva a esse objeto mágico, pelo odor que transporta… e há mesmo aqueles que entre todos os livros possíveis, preferem os livros antigos. O prazer de adquirir algo com história. A possibilidade de imaginar as vidas dos proprietários, o modo como se relacionaram com ele, as viagens imaginárias que cada um lhes permitiu realizar…. Ou tão só, o poder e o prestígio obtidos ao conseguir uma edição antiga, algo raro com valor económico ou sentimental, ou apenas pelo próprio hobby do colecionismo… há um certo culto do livro, esse objeto desejado que se quer possuir e mostrar. Um culto onde há vaidade e investimento! Mas há também amor, Miguel reitera “diz-se que a filosofia é amor à sabedoria. E uma livraria, os livros, são o amor ao conhecimento”.
Para Miguel Carneiro e para a Moreira da Costa, o legado deverá continuar, pois, como o mesmo remata: “há uma sexta geração a caminho. Tenho um filho, é o André Carneiro. E ele também já vem para aqui, estuda aqui, gosta de estar aqui, só que a decisão tem de ser dele”.
Acreditamos que seja qual for a decisão, a Livraria Moreira da Costa continuará o seu caminho de guardiã e amante de livros, para bem dos livros, dos leitores e da cidade do Porto.
Colaboradora/Filósofa