Os problemas sanitários e sociais marcavam a vida dos portuenses que eram fustigados com a tuberculose, a sífilis, o tétano, o alcoolismo, a lepra, a prostituição e os sem-abrigo. Este conjunto de problemas terão sensibilizado os jovens médicos António Emílio de Magalhães, Gil da Costa e Veiga Pires.
António Emílio de Magalhães era médico de bordo de cruzeiros e, das várias viagens efetuadas, houve uma à Argentina que o levou a contactar e conhecer uma liga de profilaxia social que combatia problemas muito semelhantes aos existentes por essa altura na sua cidade, o Porto. Regressado a Portugal com o apoio dos dois colegas e inspirado pela Liga Argentina fundou a Liga Portuguesa de profilaxia social – LPPS, com o objetivo de promover a saúde pública e prevenir doenças.
Sem sede e sem apoios
Passaram-se cem anos desde a fundação da Liga. Uma instituição que foi pioneira na saúde pública em Portugal, tendo mesmo antecedido a rede de dispensários de higiene social criados por Ricardo Jorge. O seu papel ao longo do tempo tem sido determinante ao nível preventivo, de intervenção médica e de preocupação com questões sociais e de saúde pública. No entanto, a Liga teve de ser instituída com verbas dos próprios fundadores e com o apoio de beneméritos, pois, não conseguiu apoio do Estado. Sem sede própria até aos nossos dias, atuava a partir dos consultórios dos fundadores na Rua de Santa Catarina, no 2º andar do nº 108, por cima do icónico Café Magestic.
Um dos jovens médicos, Veiga Pires, defensor de ideais republicanos e, consequentemente perseguido pelo Estado Novo, cedo decidiu afastar-se dos destinos da liga para não a prejudicar, tomando a peito o lema “em prol do bem comum”. Porém, nem com o seu abandono, a Liga obteve o almejado e merecido apoio do Estado, a não ser pequenos e pontuais subsídios do Governo que, para além de escassos, foram interrompidos em 1940.
Não obstante as vicissitudes e dificuldades económicas, a Liga manteve sempre uma profícua intervenção médico-social, constituindo-se em nome incontornável na defesa da saúde pública no século XX. Esta militância pela profilaxia foi exercida quer junto das populações quer das autoridades políticas, de modo a influenciar o legislador em matérias de saúde pública e da intervenção social.
Só em 1999, após longo e desafiador processo burocrático, a Liga de Profilaxia Social foi oficialmente registada como IPSS o que permitiu que a sua tutela fosse atribuída ao Ministério da Saúde. No mesmo ano em que comemorava o 75º aniversário foi também homenageada pelo seu papel pioneiro e como única entidade originária do Porto dedicada à prevenção da SIDA/DST. Em reconhecimento, recebeu do Presidente da Câmara Municipal do Porto a medalha de Mérito, no grau Ouro. Este apoio do Município do Porto valeu-lhe em 2023 a cedência do novo espaço que ocupa agora na Rua de Sant’Ana n.º 11. Rua reconstruída e eternizada por Almeida Garrett no romance “O Arco de Sant’Ana“.
Foi na nova sede que fomos recebidos pela atual Diretora Técnica, Drª Edite Silva que nos acompanhou na visita ao espaço histórico onde se encontra a exposição «LPPS: 100 Anos de Compromisso com a Saúde e o Bem-Estar Social». Exposição organizada por Elisa In-Uba, que nos revela a linha de força emanada pela Liga durante os cem anos da sua existência e que seguimos visando a compreensão e abrangência desta instituição. Como a nossa anfitriã reforçou “neste espaço há um espólio monumental muito vasto ligado às preocupações da Liga, algumas são questões que ainda estão muito iminentes e que, portanto, faz sentido voltar a relembrar. Através desta exposição, a intenção é por um lado, lembrar aquilo que já foi feito, e também relembrar as disparidades atuais. Portanto, há aqui artigos, cartazes, objetos, publicações, um pouco da história desta instituição que possui uma riqueza enorme.”
Ao longo de um século a Liga focou a sua intervenção em quatro áreas principais: educação higiénica, combate às doenças, sexualidade e legislação sanitária. O combate às doenças foi talvez uma das áreas onde a LPPS mais interveio, e para tal, ao longo dos anos foram múltiplas as campanhas de sensibilização e intervenção que a Liga foi promovendo, tais como: Campanha das Carquejeiras, contra a tuberculose, contra o tabagismo, Campanha Antivenérea, combate à Lepra, Campanha contra a Prostituição e a Exploração Sexual, Combate ao Cancro, Combate ao Alcoolismo, Campanha contra a Silicose, entre outras.
Campanhas Sanitárias
Uma das primeiras campanhas foi efetivamente a Campanha das Carquejeiras. Como nos referiu Edite Silva “no fundo foi uma campanha em que a Liga lutou junto das entidades políticas e afins para a erradicação desta profissão, pois, as mulheres vinham com uma carga imensa às costas pela calçada da Corticeira, uma calçada íngreme, talvez até uma das calçadas mais íngremes aqui da cidade. Elas vinham com uma carga de carqueja de muitos quilos, descalças, condições miseráveis. Então a Liga teve a iniciativa de distribuir calçado pela população de forma a erradicar ou mitigar um pouco esta questão”.
No mesmo ano deu-se, também, início a uma das mais longas Campanhas, a Campanha contra o Pé Descalço. Em 1928, data de início desta campanha, só no distrito do Porto estimava-se que cerca de 50 mil pessoas andavam descalças e que 50% das mortes associadas ao tétano eram resultantes do hábito enraizado de andar descalço. De acordo com o artigo de Tânia Ferreira “o problema do pé descalço adquiriu uma dimensão que extravasou o campo da saúde pública. Foi encarado igualmente como um problema socioeconómico – pelas avultadas despesas hospitalares no tratamento de doentes com ferimentos nos pés, e pelo acréscimo de encargos para a Assistência Pública, devido à viuvez e orfandade causadas pelo tétano.”
Estratégia Comunicacional Simples
A Liga na sua missão de educar e sensibilizar a população, pretendia chegar ao maior número de pessoas e, nesse sentido, desenvolveu uma estratégia comunicacional simples e direta, baseada em fotografias e cartazes, que rapidamente se transformaram em veículos eficazes no contexto de uma cidade como o Porto com altas taxas de analfabetismo. A propósito da importância dos cartazes, Edite Silva reiterou “são cartazes de uma riqueza enorme, que acabam por ter este tipo de expressões mais fortes, para conseguir chocar a população através das imagens, com cores muito garridas, porque estamos a falar de uma época em que a taxa de analfabetismo era muito elevada, portanto, a forma que se utilizava para conseguir conscientizar a população era pela imagem.”
Poderosas imagens e exemplos práticos, através dos quais a Liga informava, alertava e procurava persuadir a população para o perigo do tétano, mostrando que não andar calçado podia implicar infeções, amputações e até morte. Para além dos cartazes eram difundidos artigos no “Jornal de Notícias” e no “Comércio do Porto”. Na sequência desta Campanha, o Governo Civil do Porto em maio de 1928 acabou por proibir “o trânsito de pessoas descalças” ficando sujeitas a multas e penas de prisão efetivas se infringissem a norma. Esta foi uma medida pioneira no âmbito da promoção da saúde pública.
Tuberculose e BCG
Entre as doenças infetocontagiosas mais temidas e, ainda hoje não completamente vencidas, está a tuberculose, considerada uma “doença dominante” no século passado. O problema médico e social da tuberculose marcou profundamente o panorama sanitário em Portugal na primeira metade do século XX, e por isso, não poderia escapar à intervenção da Liga. Como refere Ismael Vieira “seguindo as orientações acentuadamente profiláticas da medicina do tempo, a LPPS procurou combater a tuberculose por todos os meios, começando pela cidade do Porto.”
Em janeiro de 1929 a Liga conseguiu organizar uma comissão médica para a aplicação da vacina BCG. Simultaneamente iniciou uma das medidas profiláticas mais relevantes destinadas ao combate à tuberculose em Portugal, a campanha contra o hábito de Escarrar e Cuspir na via pública. Infelizmente, por esta altura, era comum as pessoas escarrarem no chão, nas paredes, nos móveis, nos lenços ou na roupa. Escarrar era um hábito cultural em Portugal, que para além de ser uma demonstração de falta de civismo representava riscos extremos para a saúde pública.
Edite Silva referiu-nos que neste âmbito “houve várias intervenções, desde preocupações em relação à higiene da própria cidade do Porto, que depois se expandiram também a nível nacional, questões relacionadas com a reconstrução da cidade, com a assistência médica, a assistência social no geral, e questões mais específicas ainda, como o caso de uma campanha também muito reconhecida na Liga, pela sua forte intervenção, que era contra escarrar e cuspir no chão, algo que era considerado um ato perigoso e nojento, por assim dizer.”
Como sabemos mudar hábitos é difícil e moroso, por isso só ao fim de cinco anos a Liga conseguiu intensificar a luta contra o escarro, suscitando o interesse quer do ponto de vista higiénico e profilático quer pelo lado antiestético da Assistência aos Tuberculosos do Norte de Portugal (ATNP) e do Conselho Nacional do Turismo.
Para além das campanhas a Liga foi, ao longo do tempo, produzindo publicações, “são cerca de 45 cadernos culturais que, no fundo, retratam a atividade da Liga, aquilo que eram as preocupações da Liga, até em defesa da língua, por exemplo” reiterou Edite Silva. É que em 1943 a Liga empreendeu a Campanha de Profilaxia da Língua Portuguesa, que se estendeu por mais de 20 anos, com o objetivo de sensibilizar os leitores para o combate ao abastardamento do nosso idioma. Com esta luta procurava-se defender a língua como património de todos os portugueses.
Mudar leis e hábitos
Não eram só as doenças e a saúde pública o alvo das preocupações da Liga. O seu trabalho abrangia problemas sociais vastos tais como: problema dos cegos, problemas relacionados com o Trabalho, a questão da Habitação, a Higienização do Leite, o problema de Higiene no Espaço Público, Higiene da Boca e dos Dentes, Coberturas de Poços e Valas, entre outros. Destacam-se também as preocupações com os direitos humanos, e neste contexto refira-se a campanha do Casamento das Telefonistas. Durante décadas, as telefonistas da Anglo-Portuguese Telephone Company – APT entre outros requisitos tinham de ser solteiras. E, se as jovens decidissem casar sabiam de antemão que teriam de deixar a Companhia.
Fundamental foi a intervenção da Liga de Profilaxia Social, que, no Porto, desencadeou uma campanha de grande envergadura lutando pelo direito destas funcionárias contraírem matrimónio, cujo epílogo feliz acabou mesmo por acontecer no final de 1940. As meninas telefonistas assim que souberam da feliz notícia mandaram celebrar uma missa na Igreja dos Congregados e assinaram uma mensagem coletiva de agradecimento ao Dr. Emílio Magalhães.
Modernidade
Com o séc. XXI e as novas problemáticas eminentes, a Liga centra-se inteiramente na sua missão de ação social e de proximidade e serviço à comunidade local. Os novos projetos “ADOMI”, “Afetos à Mesa” ou “Aproxima” revelam o compromisso com o desenvolvimento social e a promoção de uma sociedade mais inclusiva. Edite Silva afirma “nestes projetos atualmente apoiamos cinquenta e duas pessoas, são cerca de quarenta abrangidas pelo apoio domiciliário e mais dez considerando um projeto de apoio noturno a pessoas dependentes, sem retaguarda familiar. A ideia é preparar para o descanso noturno. Pode ser o posicionamento, pode ser a gestão da medicação, pode ser a alimentação.”
Dando continuidade à visão e aos valores do seu fundador, Emílio Magalhães, a Liga de Profilaxia Social, agora instituição centenária, continua a sua missão de “promover, dinamizar, capacitar indivíduos e comunidades ao nível da saúde coletiva, para uma participação autónoma e ativa em todos os domínios da vida social.”
Colaboradora/Filósofa