Como nas mudanças de estado da matéria, há algo de alquímico na tão humana mudança brusca de sentimento.
Se alguém grita e pede auxílio por se sentir assaltado, não é de estranhar que os circunstantes reajam energicamente e gritem com raiva “agarra que é ladrão”, mesmo sem terem avistado sequer assaltante e vítima.
Só já não gritam “ó da guarda” porque há muito que o policiamento deixou de ser exercido habitualmente com proximidade.
Mas se calha a polícia chegar e intervir a tempo, também não é de estranhar que parte dos circunstantes se compadeça do detido e desate a criticar furiosamente a desproporção da força policial e os métodos utilizados.
Em Jacques, o Fatalista, já Diderot ironizava com a terrível, mas pouco duradoura, fúria popular, a propósito da grande afluência suscitada pelas execuções públicas à pena capital.
Escreveu com sagacidade que a turba que avidamente se comprimia em torno do cadafalso arrancaria de boa vontade o condenado das mãos do carrasco, depois de se confrontar com a sua situação de vulnerabilidade e de se apiedar por ele.
Muitos, como eu, se terão lembrado nos últimos tempos desta curiosa mudança de sentimento popular a propósito de um caso de longo e turbulento desenvolvimento mediático.
Primeiro, viva raiva e indignação perante a suspeita de favorecimento privilegiado na obtenção de tratamentos clínicos de custo excepcionalmente elevado.
Logo depois, compaixão e compreensão para com o estado de saúde e a idade dos beneficiários, para com a inexigibilidade das acções ditadas pelo expectável amor dos pais pelo filhos, bem como para com a solidariedade social despertada por uns e outros.
Sábias observações setecentistas as de Diderot: é tremenda, mas breve, a fúria do povo, já que a consciência da sua própria vulnerabilidade rapidamente o torna compassivo.

Jurista