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Sábado, Dezembro 7, 2024

Carlos Moreira – O miúdo moreno que iniciou vida por entre as barracas às riscas e com uma lata de bolachas

O Carlos não é um escritor, não é um artista, mas é um fazedor de alegrias. A sua alegria vem da alegria que nos dá. E isso nos tempos que correm não é coisa pouca. É um vendedor ambulante de Bolacha Americana.

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Rosa Fonseca
Rosa Fonseca
Professora e Escritora
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Direitos Reservados

Por onde passa não deixa de cumprimentar e falar com quem se cruza. Conhece, como ninguém, as ruas e ruelas da cidade. Deambula por elas todos os dias, faça sol, faça chuva. Sim, já o vi proteger-se em vãos de escadas . É preciso ganhar a vida e a concorrência veio para ficar; agora, até nas grandes superfícies se vende a iguaria.

Aveiro conhece-o bem, faz parte da nossa mancha urbana. Representa um outro tempo que tenderá a ficar preso na memória coletiva. É parte da nossa identidade aveirense.

O rapaz da bolacha, como o conhecíamos, começou a vender Bolacha Americana por volta dos 9 anos, na praia da Barra. Sou desse tempo glorioso de verões à beira-mar e Bolacha Americana a desfazer-se na boca. A praia tinha o sabor desta guloseima. Uma bolacha doce, estaladiça.
Pelo extenso areal soava um pregão que ficou para sempre: “Bolacha americana uma para ti outra pra mana”. Era assim que o Carlos e alguns dos seus irmãos anunciavam os dias.

Conheço o Carlos desde sempre, a idade aproxima-se e vivíamos muito perto um do outro.
É filho de uma família numerosa, se não falho, eram 14 irmãos. Recordo com saudade a sua mãe, mulher afável e generosa, a “Ti Maria dos Campos”, que fazia em casa pequenos chupas de açúcar que enrolava em papel às cores, muito fino.
Que cheirinho se espalhava nas estreitas ruas do bairro! A miudagem rumava até lá para receber as sobras do açúcar queimado.

O Carlos não gostava da escola, mas sim da rua e foi na rua que cresceu, quando nela tudo se desenrolava, sob o olhar atento dos seus pais e os do bairro. Gostávamos da sua simplicidade e ingenuidade que de certa forma se mantêm até hoje.
Foi crescendo e tornou-se um homem responsável, vendeu lotaria para o pai e trabalhou na Suma durante 20 anos.

Não posso deixar de referir que o rapaz tinha um apelido que em criança não se importava de tomá-lo como seu: “Tilas”, que se perpetuou. Mas hoje e bem, Carlos fica zangado se não o tratam pelo seu nome de batismo. Ninguém o faz por mal é a memória que guardamos em nós.
Este rapaz herdou da mãe a generosidade, gosta de oferecer-nos Bolacha Americana. Há uns tempos assim o fez comigo.
Gosto de acreditar que ainda vive em si aquela criança do bairro.

Numa conversa que tivemos, contou-me dos seus três netos da sua única filha. Vi-lhe um brilhozinho nos olhos e uma ternura escondida.
Serão certamente o seu maior orgulho e feito. Cumpriu-se nesta vida que nem sempre lhe foi branda.

Hoje continuamo-lo a ver em todas as ruas de Aveiro, carregando a vida na sua lata de Bolacha Americana.

Ainda é ouvido a projetar a sua voz, recorrendo às próprias mãos. Leva-nos como uma brisa, àqueles tempos que palmilhava os areais sem parar.

Mas para mim, ainda é na praia da Barra que o vejo; aquele miúdo moreno, franzino, por entre as barracas às riscas a iniciar a sua vida numa lata de bolachas.

Parabéns ao homem que soube compor o seu caminho quando tudo parecia às avessas.

O Carlos da nossa infância fará 65 anos em janeiro.

A vida é feita destes homens que se cumprem.

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