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Sábado, Dezembro 7, 2024

Abraão Januário Bandeirinha: Histórias, música e resiliência – Por Mª do Céu Monteiro Cardoso de Moura

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Abraão Januário Bandeirinha

(12.04.1941)

Comerciante ligado à indústria hoteleira

Estamos perante uma pessoa que sempre tentou e tenta colocar alegria na vida. Abraão é um excelente contador de histórias, portador de uma fabulosa memória. Nada lhe passa ao lado. Homem que tem a capacidade de guardar o menos bom da vida sem lamentos. A sua harmónica, é um objeto pessoal de bolso, sempre que a ocasião proporcione lá vai tocando uma musiquinha ali outra acolá e assim, ao longo dos anos, foi dando ritmo ao seu viver e com quem ele convive…


Começo por contar algumas passagens durante a tropa no ultramar.

Primeira além de muitas, a minha especialidade militar era transmissões. Exercia, na altura, como operador de rádio e emissor em Sta Eulália, região de Dembe, em Angola.

Além da especialidade, tinha a profissão de hoteleiro. Cheguei a cozinhar muitas vezes para toda a companhia. Muitas vezes era chamado para cozinhar em dias de festa. Numa dessas festas matou-se um porco e, depois, fez-se com ele três refeições para toda a companhia. A primeira refeição foi arroz de sarrabulho. No segundo dia, foi feijoada à transmontana. No terceiro dia, foi lombo assado no forno. Agora a verdadeira história vai ser aqui nesta última refeição. Menu: Lombo de porco assado no forno da padaria. Quando a meio da cozedura (assado), chegou lá o Vagomestre e foi verificar se o assado estava em ordem, ao abrir a porta do forno, veio-lhe o cheiro a bedum, ou seja, o porco não tinha sido castrado. O Vagomestre fechou o forno e foi ter comigo ao posto rádio dar-me a notícia a dizer-me que o porco estava estragado, impróprio para consumo. Conclusão desta história. O porco ficou bem assado e, foi servido a todos os oficiais e praças. No final da refeição, eu tive um louvor dos serviços alheios à minha especialidade, porque a minha especialidade era de transmissões e não de cozinheiro.

Outra história – Certo dia, tive que deslocar-me com alguns tropas da Companhia. Fomos montar uma ponte no Rio Candende, na fazenda de Vista Alegre porque aí chovia muito. A meio do caminho, tivemos que recuar e tivemos que acampar ali durante oito dias. Na primeira noite, fui ao pelotão, ao local onde seria montada a ponte. Sofremos um ataque em que foi ferido um soldado da nossa Companhia. Era um rapaz de Trancoso. Depois veio um helicóptero buscá-lo para o Hospital Militar de Luanda. O segundo ataque foi ao acampamento onde nós estávamos acampados. Outro soldado foi ferido gravemente. Foi igualmente transferido por helicóptero para o Hospital de Luanda. O terceiro ataque, aconteceu quando estávamos prontos para voltar. Estava feita a inspeção ao local onde seria construída a ponte. Um grupo do nosso batalhão foi fazer o reconhecimento ou busca para a retirada, e sofreu um ataque, onde um dos nossos companheiros foi abatido e teve morte imediata. Aqui acabou a operação, com a retirada da nossa tropa e a trágica morte de um soldado e dois gravemente feridos.

Depois do dever militar cumprido, regressei ao trabalho profissional de hotelaria e similares. Voltei à vida normal de trabalho de comércio geral.
Trabalhando eu nos armazéns de Mulambeira, em Luanda, fazia distribuição de mercadorias alimentícias como por exemplo peixe seco, mandioca, farinha de pau, vinhos, todo o género alimentar. Também no armazém havia uma mistura de pronto a vestir, alfaiate, costureira, etc.

Foi aqui neste trabalho que conheci a minha mulher com quem hoje estou casado há 39 anos, da qual tenho duas filhas. A Paula, que nasceu em Moçambique, cidade da Beira, e, a Lúcia que nasceu cá, no Porto. Da Paula, minha filha mais velha, tenho uma neta, a Bruna. A Paula está casada com o Zé Carlos e Lúcia com o Daniel. São bons rapazes.

Conheci a minha mulher em Luanda como cliente dos Armazéns Mulambeira. Como ela ia lá fazer as compras, começamos aos poucos a dar-nos a conhecer um com o outro, acabando em casamento, na cidade da Beira em Moçambique. Como tinha familiares em Moçambique, nomeadamente irmãos, meu pai, sobrinhos e cunhados, fui para lá trabalhar com o meu irmão mais velho, o Armindo, que já faleceu, trabalhar no Café e restaurante chamado “Continental”. A Soledade (minha mulher) ficou em Luanda, cerca de um ano. Quando fiz a sociedade fundamos o Café “Bonjardim” no lugar da Manga, Beira, Moçambique. Passados mais ou menos um ano desfiz a sociedade restabeleci-me sozinho com a Soledade, na mesma rua só que o restaurante chamava-se “Restaurante Africano”.

Entretanto veio o 25 de Abril. As coisas lá pioraram, a vida para o branco piorou. A minha mulher e filha, a Paula, vieram para Portugal. Passados mais ou menos cinco meses vim eu. Vim mais tarde porque tentei passar o restaurante para conseguir dinheiro para a viagem. Ainda me lembro, cheguei aqui com 500$00.
Quando cheguei, em 1977 fui trabalhar para o Centro Comercial Brasília, na Boavista. Trabalhava na cozinha no “Disco-bar”. Trabalhei aqui cerca de onze meses. Depois saí e estabeleci-me sozinho no restaurante e café Cradamoque, na praça Sousa Caldas. Aqui estive mais ou menos nove anos.

Passados mais ou menos um ano, abri no prédio Torre das Camélias, um restaurante com o mesmo nome, ou Café da torre das Camélias. Aqui estive seis anos. Depois voltei a mudar até que um dia me afastei e voltei a trabalhar como cozinheiro na Ribeira. Voltei novamente a estabelecer-me com um colega.

Certo dia, estava muito bem a jantar, tinha o carro estacionado à porta do estabelecimento e, por descuido, deixei a chave de ignição no carro. Um individuo de mau porte entrou no carro e pôs-se a andar. Eu tendo-me apercebido, levantei-me e fui a correr ao encontro do carro no momento em que este estava parado no sinal vermelho eu pus o pé à frente do carro, dando um soco no vidro e disse ao indivíduo: dá-me o carro que é meu. Nesse preciso momento ele arrancou e levou-me à frente. Fui para ao hospital. Estive dez dias no Hospital de St° António nos politraumatizados e cerca de vinte dias no Hospital de Vila Nova de Gaia.

Quando saí do Hospital vim em cadeira de rodas. Só comecei a andar passado um ano ou mais. Perdi praticamente a visão, com a pancada que levei resultante deste acidente. Neste momento com os óculos muito graduados vejo cerca de 30% de uma vista e 0% da outra. A partir deste acidente, passei de ativo para inválido. Vou-me orientando, mas dependo muito da Soledade. O indivíduo que me roubou o carro foi apanhado e levou dezassete anos de prisão. Mas o mais grave foi ter perdido a visão. No entanto, lutei sempre por ser autónomo. Tenho bom sentido de orientação e, no fundo, não me sinto revoltado. Enfrentei a realidade.

Neste momento, estou no Centro de dia do Lar António Almeida Costa. Ocupo o meu tempo com a música. Toco flauta, realejo, castanholas, harmónica, por aí. Toco tudo por ouvido.

Aqui faço uma homenagem à minha mulher e filhas que sempre me acompanharam com todo o carinho, para nunca me sentir triste com o que aconteceu. São as mulheres da minha vida, Soledade, Paula, Lúcia e Bruna.

Acrescento os meus genros que também são meus amigos e me apoiaram no que lhes era possível. Tenho muitas pessoas amigas que também me apoiaram. Nunca deixei de fazer vida própria e sinto-me um homem realizado, principalmente familiarmente. Esta realização começou nos Armazéns da Mulambeira a partir do momento em que conheci a Soledade.

Lar António Almeida Costa

 

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