Rui Caria, podíamos começar pelo início, como é que a fotografia surgiu na sua vida?
“Isso é uma história muito pouco romântica, na verdade. Não tive aquela câmara aos sete anos, nem o meu pai era fotógrafo. A fotografia surge na minha vida há cerca de quatorze anos, se calhar”.
Pode dizer-se que foi uma descoberta?
“Foi uma redescoberta, diria eu, porque eu trabalho em imagem, desde sempre. A minha carreira começou efetivamente em televisão em mil novecentos e noventa e três, enquanto repórter de imagem, mas eu sempre tive esta coisa de olhar para câmaras e ficar fascinado. Muito antes de ser profissional, pensava…E se fosse em televisão, e se fosse em fotografia?! Se calhar nem sabia muito bem a diferença quando tinha aquela idade, mas eu acho que a partir dos quinze, dezasseis anos comecei a olhar para isto. Depois, o meu irmão mais velho emprestava-me sempre uma câmara quando eu lhe pedia, e ele emprestava-me aquilo lá a muito custo.”
Pensar e fotografar
Afinal há uma história com uma câmara…
“Uma câmara que, curiosamente, ele me ofereceu agora, quando eu fiz cinquenta anos. Agora lembro-me que afinal desde os seis anos, era a câmara que ele dizia que eu lhe roubava. Claro que os rolos eram muito caros, as revelações eram muito caras, e a gente fazia apenas revelações quando podia. Mas sempre tive essa coisa da fotografia. Claro que agora já sou grande, não é?! [risos] E a minha vida é isto, e sempre que pego numa coisa nova para fazer, tenho de a levar a sério, tenho de fazê-la o melhor possível. E por isso não há, assim, aquela história espetacular da criança que com quatro anos já estava a fotografar.”
Mas há uma discussão antiga que é já uma frase célebre: Afinal, é a câmara que faz o fotógrafo ou é o fotógrafo que faz a câmara?
“É as duas coisas. Eu acho que é sempre o índio e não a flecha. Mas, de qualquer forma, a flecha pode ter influência, porque… E aqui estamos a falar, obviamente, do equipamento que nós usamos. Eu acho que crio mais se estiver mais satisfeito com o que estou a trabalhar, com o equipamento que uso. Se tiver mais prazer a trabalhar com um certo equipamento, eu sou capaz de ser mais criativo, de me automotivar, de ter prazer a trabalhar. Desse prazer vem a motivação, da motivação, se calhar, vem a criação, e da criação vem um trabalho se calhar um pouco diferente do usual, um pouco diferente daquele trabalho em que nós só pensamos no valor que vamos cobrar por aquilo ou pensamos numa questão muito utilitarista e eu nunca penso muito nisso, ao contrário.”
Em que é que o Rui pensa, então, quando fotografa?
“Eu penso sempre nos bonequinhos e nas imagens a acontecerem na minha cabeça e esqueço-me que vivo disto, na verdade, nunca penso muito no valor e às vezes tenho de pensar noutras coisas. Mas é isso que também se calhar me fez chegar aqui. Se calhar é pueril até esta conversa de não pensar muito noutra coisa que não seja a imagem. Mas é assim que eu penso. E acho que vou morrer assim.
Julgo que está a desvalorizar traços do seu carácter…. É que tudo o que tenho visto seu tem muito a ver, também, de algum modo, com uma certa intervenção, uma preocupação com o que o rodeia. Ou seja, tem fotografado guerra, tem fotografado os migrantes no Mediterrâneo, andou a fotografar as mulheres da Nazaré. Fez uma exposição onde recuperou nos Açores algumas profissões ancestrais, e agora tem uma exposição patente na Cidade da Praia sob o título “Guerra”.m O Rui é um fotógrafo preocupado com os direitos humanos e o ambiente?
“Tem de haver essa preocupação, temos de nos preocupar com quem não tem tempo para se preocupar, não tem tempo no sentido da oportunidade. Há pessoas que não têm voz, ou melhor, toda a gente tem voz. Porém, há pessoas que não são ouvidas, é mais isso. E eu, se calhar, sou ouvido, de alguma maneira, e posso utilizar essa ferramenta, até de uma forma inconsciente, e levar a voz daqueles mais calados ou menos lembrados a outros canais, a outros públicos e a outras geografias. Por exemplo, levar a guerra da Ucrânia a Cabo Verde, à África, pode parecer, a dada altura, inicialmente até absurdo, porque a gente, quando pensa em Cabo Verde, pensa numa África “fofinha”, numa África de música e de pintura e de artistas de Funaná e coisas do género, que é fantástico, mas… Não é só isso. Aquilo é uma ilha, é um país, é um continente. Moçambique está em guerra agora. Ou seja, as coisas chegam todas aos sítios onde têm de chegar. A guerra poderá chegar a Cabo Verde, como chegou à Ucrânia, e poderá chegar aos Açores, onde eu vivo, poderá chegar aqui a Portugal. Ninguém está livre disso. E nós temos de ter um trabalho interventivo, posso abrir consciências, acho eu, e eu nunca faço um trabalho a pensar absolutamente em… condicionar o pensamento do outro. Mas, é claro, às vezes acaba por acontecer.”
Acabou de tocar numa questão essencial, a questão de dar visibilidade através da fotografia…
“Acho que é útil se for feita com alguma intenção de mostrar coisas outras. A fotografia não é para nós, é para os outros. Nós trabalhamos para os outros”.
O Rui Caria esteve 40 dias seguidos na Ucrânia logo no início da Guerra. Como é que se regressa dessa realidade, de uma guerra na Europa que começou há dois anos, quando ninguém esperava?
“Isso Muda. Ou seja, nós mudamos e transformamo-nos a todo o momento, a assistir a um filme, a ver uma pintura num museu, a ouvir uma música, nós transformamo-nos. Ao vermos uma guerra também nos transformamos. Algumas transformações são melhores, outras piores. Mas somos feitos disso tudo. Essa amálgama de camadas, de coisas que nos vão acontecendo. A guerra aconteceu-me, porque eu fui lá ter com ela. Ela não veio ter comigo, ao contrário. Mas eu senti que tinha alguma necessidade de perceber o que é que os outros estavam a sentir. Isso para mim é sempre uma experiência muito interessante. Eu ir aos outros locais, ainda que seja como um outsider, como um viajante, digamos assim, porque eu não fui para a guerra, eu fui à guerra. E não fui dar tiros, fui fotografar. Fui disparar uma câmara.”
Imagens e palavras
De qualquer modo, não era uma experiência isenta de riscos. Correu riscos. Teve Medo?
“E com medo. Corremos sempre riscos, e é bom que tenhamos medo, senão morremos no mesmo dia. Mas essa necessidade que eu tenho de ver o mundo a acontecer é uma coisa que, se calhar, também vai morrer comigo. Não sei muito bem explicar isto, nem sequer precisa de ser explicado. Eu gosto de ver as coisas a acontecer à minha frente e de poder até mostrar aos outros, para isso é necessário fotografá-las.”
Então, será que se pode dizer que as grandes causas e, sobretudo, o grande sofrimento humano, porque embora estejamos no século XXI, o sofrimento continua a emergir, continuam a motivá-lo para fotografar?
“Eu gostava mais se não houvesse isso tudo. Mas existe! E existindo, cá estamos para fazer projeção. Para fazer de altifalantes, de megafones. E ainda bem que me vão dando credibilidade. Porque enquanto eu sentir que tenho isso, estou a ser útil. Uma vez que nós temos de ser úteis, de alguma maneira. Não só para nós, mas também para os outros. É uma questão coletiva. Esta utilidade coletiva que eu acho que temos de ter todos, em que todos temos de participar. E se todos conseguirmos participar nisto então teremos mais força, não é?! E se as pessoas me derem ouvidos, no caso, é mais olhos do que ouvidos. Mas, enquanto isso for acontecendo e eu tiver esse retorno de que estou a ser tomado em conta com aquilo que faço, com aquilo que eu acho que é o meu rigor e a minha honestidade. Então encaixará nos outros, de certeza. E se calhar para outras pessoas não encaixará tão bem, porque somos também assim.”
Porque a “imagem continua a valer mais do que mil palavras”, não é?
“E isso é perigoso, e só por isso é perigoso. Porque esse valor que ela tem, tanto serve para uma coisa como para a outra. E nos dias de hoje é cada vez mais perigoso olhar para uma imagem e eu acho que já não conseguimos olhar para uma imagem que achemos mais estranha sem pensar que ela possa ser gerada por uma máquina, por exemplo. Ou manipulada por um humano, ou manipulada até por uma máquina. Há essas possibilidades todas e cada vez essa frase da imagem conter mais do que mil palavras, começa a perder o romantismo que tinha. E começa a ser até perigosa…. Uma fotografia pode acabar e começar uma guerra, na verdade.”
A necessidade de ter tempo
Enquadra-se aqui a inteligência artificial?
“Claro. E por isso o valor da imagem é muito importante e temos de ter o máximo de cuidado com o que aí vem. Mas eu acho que o que aí vem também pode ser uma oportunidade, a inteligência artificial, falo dela naturalmente, pode ser uma oportunidade para nos humanizarmos mais ainda. Para que a possamos ver como uma oportunidade e não tanto como um perigo.
Mas, por exemplo, eu acho que se fizer um trabalho honesto e rigoroso e daquilo que eu acho que é a representação da realidade como eu a vejo, e se aquilo chegar às pessoas e se as pessoas perceberem que é feita por um humano, e se eu nunca cair na tentação de enganar as pessoas, eu vou estar sempre à frente da máquina. Porque a máquina não tira fotografias, cria imagens a partir de fotografias tiradas.
Nada é criado, é tudo feito. A máquina faz um puzzle com o que já existe. E nós não, nós ainda criamos coisas. E essa lógica de criar, eu acho que é dos humanos ainda.”
O Rui disse em tempos que para se fazer boa fotografia é preciso ter tempo. Continua a ter tempo para fazer boa fotografia?
“Continuo. Cada vez tenho mais tempo. Embora pareça que tenho menos tempo. Vou morrer daqui a dias, porque vou ficar velho, mas o tempo é uma coisa que é necessária. É muito importante. E a única vantagem de andar aqui é conseguir ganhar tempo.”
O que é que ainda lhe falta fotografar?
“Não faço ideia. Nunca penso muito nisso.”
E do que fotografou, o que é que o terá marcado mais?
“Tudo. Tudo me marcou de alguma maneira. Não há um trabalho do qual eu gosto mais ou menos. Há trabalhos que as pessoas gostam mais, porque lhes diz mais alguma coisa e a mim diz-me se calhar um pouco menos. Há trabalhos que me dizem imenso a mim e diz muito pouco a outras pessoas. É uma coisa que não está sincronizada com o público e não tem destaque. Não tem destaque, porque é assim que nós somos. Produzimos para os outros, mas também para nós. O olhar é a técnica daqui. É o índio e não é a flecha.”
Tivéssemos nós mais tempo ou tão só a capacidade de o ganhar e teríamos continuado por longas horas à conversa com o fotojornalista. Rui Caria é um artista com olhar crítico que através da fotografia dá visibilidade a problemas fraturantes da nossa sociedade. O seu trabalho é o reflexo do seu olhar. Um olhar preocupado, atento e incisivo que através das ferramentas disponíveis capta e regista histórias que ora nos cativam ora nos interpelam, suscitando interpretações múltiplas.
Percurso Profissional
Rui Caria é português, nascido em 1972 na Nazaré e vive desde 2005 na Ilha Terceira, Açores. É fotojornalista e colabora com vários órgãos de comunicação social desde 1990, altura em que iniciou o percurso profissional na área da imagem através da realização de pequenos filmes comerciais. Em 2022 esteve 40 dias na Ucrânia como enviado especial da SIC e algumas das suas fotografias foram publicadas no site Presidencial Ucraniano. Em 2016, foi Câmara de Prata da Federação Europeia de Fotógrafos na categoria de fotojornalismo na competição de fotógrafo europeu do ano e foi vencedor do prémio Sony World Photography Awards 2019 – pela National Awards.
Reportagem OC : Maria João Coelho (texto) e Vítor Lima (fotos)
Colaboradora/Filósofa