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Terça-feira, Novembro 5, 2024

“Quem quer quentes e boas, quentinhas?” – Por Rosa Fonseca

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Rosa Fonseca
Rosa Fonseca
Professora e Escritora

Ao vendedor de castanhas da nossa infância

vendedor de castanhas 2
Direitos Reservados

Na minha imaginação de criança, o homem das castanhas vinha de terras longínquas, agrestes e pobres. Atravessava montes e ruas sombrias até chegar ao mar. Via-o rodeado de filhos pequenos sentados à lareira nas longas noites de inverno. Mas também os via a correr atrás do carro de madeira a romper as manhãs; um ranger dorido com travo a inquietação. E vinham, por aí abaixo, consolar os dias dos senhores da cidade.

Víamo-lo como a salvação para os dias que se avizinhavam arrefecidos e chovidos, mas também uma alegria sazonal na tristeza parda do homem.

Anunciava-nos o frio e o vento pelas margens da ria. Ali se estabelecia durantes os meses frios. Aqueles em que o aconchego é mais do que necessário para continuarmos a ser outono.

Os primeiros ventos traziam um pregão antigo – entoava nos dias pardacentos como um raio de sol a aquecer-nos por dentro: “Quem quer quentes e boas, quentinhas?”. Um pregão solto a difundir-se pela praça.

Nos fins de tarde, entre nuvens espessas e aroma a fumo, saltitavam cinzentas no fogareiro as pérolas do outono. Agasalhava-se a cidade de um calor umbilical.
Meia dúzia de castanhas afunilavam-se no cartucho de papel de jornal, onde as notícias já tinham morrido e as nossas mãos estendidas, buscavam apaziguamento para as dores silenciosas do assador de castanhas.

Sempre me inquietaram as tristezas nos rostos dos que por mim passavam – ainda hoje as perscruto. Sou inquieta face à condição humana mais desfavorecida: o homem das castanhas e o amolador são figuras da minha infância que de alguma forma, me despertam para isso.

Apesar de novos ventos e mudanças, estas pessoas continuam a lutar por dias melhores e a empurrar os outonos da vida e a vender calor em sacos de papel.
Os cartuxos foram substituídos por sacos higienicamente estilizados com logotipos sofisticados, mas as mãos que afagam as castanhas trazem na mesma as adversidades do caminho.
Confesso que me entristeci, quando o meu filho, um destes dias me trouxe meia dúzia de castanhas num desses sacos…Não foi fácil percorrer os caminhos da memória em busca das folhas de jornal desbotado ou papel pardo.

Todos os anos por esta altura se aviva a memória e trazemos de volta todas as tardes nebulosas junto à ria, no centro da cidade. Um fumo espesso vagueia sobre a proa dos moliceiros.

Talvez o pregão tenha mudado ou nem exista, mas sei que o assador de castanhas da minha infância, ainda mora em mim e vem dessas terras longínquas, com os novos filhos pela mão e outros idiomas.

Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Talvez hoje nos apeteça ouvir, na voz de Carlos do Carmo e os compositores Ary dos Santos e Paulo de Carvalho, a canção, “O HOMEM DAS CASTANHAS”.

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