As obras de Joaquim Filipe apresentam um universo onde as formas tangíveis coexistem com uma natureza translúcida na construção de uma diegese, à partida, impossível.
Conheço o Joaquim Filipe há 13 anos, lecionámos na mesma escola, Escola Secundária José Estêvão em Aveiro, onde é professor de Artes Visuais. A sua atividade tem passado pelo Design Gráfico, Design de Equipamento e Pintura. Ao longo dos anos fui tendo contacto com os seus trabalhos, quer na escola ou nas galerias da cidade. É um ser humano generoso e afável, atento e reflexivo. Em algumas conversas percecionei a importância da arte na sua vida. Acho mesmo que é através dela que se exprime melhor e se dá a conhecer. As emoções e sensibilidades face ao seu EU e o mundo, espraiam-se em cada obra que executa.
O artista nasceu no Concelho de Ílhavo, Distrito de Aveiro, em 1958. Em 1983 entrou na
Escola Superior de Design do IADE – Lisboa.
Não sendo eu uma entendida em arte, auxiliei-me das conversas com o artista, das obras que fui vendo e apreciando e da sua biografia. Conjugando os dados fico com a plena ideia de que tudo o que sai das suas mãos é de uma desmedida coerência artística, com uma evidente identidade técnico-formal.
É na sua própria casa que Joaquim Filipe tem o seu atelier. O seu espaço mágico, envolto numa esfera única. Foi totalmente criado pelo artista, como invólucro fundamental para reter a luz, ou a sua ausência, tudo misturando com os cheiros da ria, ali mesmo a dois passos, e as nortadas, por vezes fortes e de canto sibilino, verdadeiramente purificadoras.
É aí que dá asas à sua criação entre cavaletes, tintas e telas onde imprime os seus sonhos.
Joaquim Filipe é um artista cujo estar na arte, ocorre através do aproveitamento de motivos paisagísticos, motivos, sempre entendidos, e penso que acertadamente, como justificação para os seus enunciados inequivocamente plásticos. Plasticidade que é, no seu caso, sinónimo de, eminentemente, desenho. Desenho onde se combinam alguns teores próximos da tradição e outros de carácter inovador. Os motivos aproveitados são de ordem arquitetónica, ou urbana, e similarmente motivos naturais. Enfatizados ou surgindo combinados em fusões bem definidas. O que se nota no extremo cuidado posto no traçar e no colorir. Um cuidado que revela o acusado sentido do prazer de fazer e de que é consequência uma textualização imagética onde o final é um valor nuclear.
Em todos os seus trabalhos há sempre uma forte manifestação do desenho, servindo-se o artista da cor pintada, quase sempre monocrómica, para robustecer esse mesmo desenho ou garantir-lhe enquadramento.
Em muitos das suas obras há uma história de menino-homem que viveu com um pai casado com a vida marinheira; há a história dos carinhos que só se sentem e se vislumbram através de vigias de bordo que os sonhos acalentam; há a presença-ausência do pai que o mar lhe rouba e só lho devolve intermitentemente. Mais do que histórias vividas são as histórias de uma vida que viveu de afastamentos. Os quadros de Joaquim Filipe são, quase todos, o regresso anelado ao cais dos afetos, que a vida do mar lhe impôs.
Isto vê-se e sente-se nestes “fundos” de memórias que marcaram indelevelmente a vida do artista e que ele de forma admirável plasma nos seus trabalhos.
Tudo isto nos aparece nos quadros de Joaquim Filipe em vinhetas desenhadas a grafite encastoada na turbulência de ondas que levaram o castanho da terra para o emaranhado dos seus movimentos.
As obras de Joaquim Filipe apresentam um universo onde as formas tangíveis coexistem com uma natureza translúcida na construção de uma diegese, à partida, impossível.
A apropriação de motivos barrocos, essencialmente de características vegetalistas, constrói, dissimuladamente, uma tessitura sobre a qual elementos retirados a um imagético marítimo ou passagens da existência humana encenam narrativas insólitas que se mantêm em paradoxo constante com o pretensamente real que enformam.
Os habilíssimos fundos em velaturas de acrílico recusam sistematicamente a cor, elemento maior da pintura. Por seu turno, o desenho, que impera particularmente nos óculos e aberturas rasgadas sobre as paisagens, foge à herança canónica da linha para se desenvolver através do uso de manchas em grafite.
Numa das suas exposições de Desenho e Pintura, o artista refere: “Por vezes, tenho necessidade de mostrar o avesso, o lado interior e escondido de uma “tapeçaria” que não me canso de tecer, mas que sou eu. É certo que, em muitas vezes, este lado está cheio de imperfeições, com linhas fora do sítio e com pontas por cerzir. No entanto, encaro este “risco” porque reconheço que esse avesso tem todas as características de uma construção que não para. A distância, o não saber e o indefinido, projetam-se nos labirintos urbanos, nos rostos e nas curvas dos jardins, juntamente com toda uma imagética de espaços interiores, sempre entendidos como elementos envidraçados e velozes. Entre coisas fugazes que podem causar perda, há a felicidade do ganho da memória, da voz e dos risos etéreos que ensinam e inspiram.”
“Nos seus trabalhos, Joaquim Filipe procede por deturpação, escamoteia ou altera dados necessários à decisão do destinatário procurando induzi-lo a uma leitura tão vacilante quanto possível.”
Os seus trabalhos já passaram por incontáveis galerias de arte em todo o país. Encontram-se também em inúmeros espaços públicos, nomeadamente: No chafariz da Gafanha da Boavista, na Igreja Matriz de Ílhavo, no Hotel de Ílhavo, no Hotel Porto Palácio, na sede das Associações Juvenis do distrito de Aveiro, na Federação Nacional das Associações Juvenis no Porto e na Associação A Tulha.
Vale a pena conhecer o homem que vive por dentro da sua obra e a obra que emerge da sua viagem interior.
Professora e Escritora