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Quinta-feira, Janeiro 23, 2025

Latina – A triste despedida de uma livraria octogenária e com carácter

Fecharam-se, definitivamente, as portas da Livraria Latina no Porto; foi no sábado, 4 de janeiro de 2025, e com elas encerraram-se décadas de história literária e cultural vivenciadas por várias gerações, só transformadas a partir daqui em boas memórias.

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Maria João Coelho
Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa

Em outubro passado, o nosso colega e amigo Onofre Varela publicou, em primeira mão,no nosso jornal – O Cidadão – que a livraria Latina ia encerrar. Desde aí, retomei amiúde as minhas visitas à Livraria. Fui adiando a escrita, ficou suspensa até hoje, uma crónica que de alguma forma pudesse atestar o espírito e a vida desta casa dos livros. Partilho inteiramente a opinião de Varela: “A Latina é uma das livrarias mais emblemáticas da cidade do Porto, tendo sido fundada em 1942 por Henrique Perdigão que teve a ideia de, naquele espaço, criar mais do que uma livraria: seria um ponto de encontro dos bibliófilos e de simples leitores ou clientes ocasionais.”
Faltavam poucos dias para a comemoração do 83º aniversário!

Foi em janeiro, mas no dia 15 do ano de 1942, num período em que a Europa vivia a II Guerra Mundial e Portugal o Estado Novo de Salazar, em tempos difíceis e de grande instabilidade, que remando em contramaré, na Invicta, um corajoso visionário de nome Henrique Perdigão iniciava o seu projeto e abria as portas da Livraria Latina. Ocupava o número 2 da Rua de Santa Catarina, mesmo ao virar da esquina da Praça da Batalha no seu cruzamento com a Rua 31 de Janeiro. A sua localização augurava um futuro promissor. A Rua de Santa Catarina, atualmente uma das mais conhecidas ruas do Porto de cunho comercial, está desde o seu início, estreitamente ligada aos intelectuais e escritores. Foi aí que nasceu o poeta António Nobre e que, em tempos viveu Guerra Junqueiro. Também aí ficava a casa onde Camilo Castelo Branco e Ana Plácido se casaram em 1888. Uma rua onde Condes, Viscondes e Brasileiros de torna-viagem construíram os seus Palacetes. Num deles, o palacete brasonado de José António de Castro Pereira, posteriormente arrendado ao Liceu Nacional Central do Porto, lecionou Antero de Quental. Outro famoso palacete, do qual já só resta a fachada e que corresponde ao shopping Via Catarina, o antigo palacete de Inácio Pinto da Fonseca foi a partir de 1921 a sede do jornal “O Primeiro de Janeiro”, jornal fundado por intelectuais pertencentes ao movimento político e cívico Janeirinha, em 1868.
Refira-se ainda, no âmbito da toponímia desta rua, que a mesma deve o seu nome ao antigo templo de madeira que fazia parte da quinta de Fradelos, construído em homenagem a Santa Catarina. Após as obras de ampliação e de restauro no início do séc. XVIII, ficou conhecida como Capela das Almas de Santa Catarina. As suas deslumbrantes fachadas, principal e lateral, a partir daí, foram cobertas por 15.947 azulejos historiados da autoria de Eduardo Leite e produzidos em Lisboa, na Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego, representando passos da vida de São Francisco de Assis e de Santa Catarina de Alexandria, a padroeira dos estudantes, professores e pensadores.

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Henrique Perdigão, o homem culto fundador da Livraria Editora Latina.

O fundador da Latina não poderia ter escolhido melhor localização para berço da sua firma, criada com dupla vocação: livreira e editorial. Henrique Perdigão era um homem culto, viajado, empreendedor e criativo e, estava determinado a revolucionar o mercado livreiro. Sob a sua chancela foram publicados livros de autores tão relevantes como: Teixeira de Pascoaes, Antero de Quental, António Botto, João Gaspar Simões, Ramos de Almeida, Jaime Brasil (sob o pseudónimo A. Luquet devido à censura), Manuel do Nascimento, Fausto Duarte, Keil do Amaral… Orgulhosamente, afirmava nos jornais que tinha o sonho de construir «a mais moderna organização livreira e editorial do País». Na publicidade feita por altura da inauguração da sua casa comunicava que “«desejando comemorar [tal] facto pela forma mais adequada e significativa, resolvemos abrir, desde já, um concurso entre escritores de língua portuguesa, oferecendo o prémio de CINCO MIL ESCUDOS ao autor do melhor romance, classificado por um júri a designar por entidades estranhas e idóneas. Esse romance inaugurará, no género, as novas edições da «Colecção Latina». Estava, desta forma, anunciado o primeiro concurso literário português, o qual foi ganho por José Hermano Saraiva, tendo Fernando Namora recebido uma das menções honrosas. Cinquenta anos mais tarde, Henrique Perdigão, neto homónimo do fundador terá especulado “Se este último – Fernando Namora – tivesse alcançado nessa altura, o primeiro prémio, teria sido provavelmente a Latina a editar a obra daquele que veio a ser o mais popular romancista português.”

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Busto de Camões do Aguarelista António Cruz. Foto de VITOR LIMA

A Livraria Latina possuía desde o início uma fachada rosa e dourada, que agora se encontrava mais escurecida e esverdeada. Mas a sua marca inconfundível e original, está no seu frontispício – o busto de Luís Vaz de Camões. Busto encomendado por 700 escudos ao então jovem artista António Cruz, o maior aguarelista português. Perdigão quis ter como patrono da sua casa o nosso maior Poeta e, se até há pouco tempo, parecia que nada ligava Camões ao Porto, a sua última biografia da autoria de Isabel Rio Novo parece sustentar a sólida hipótese de o mesmo ter nascido na Invicta. Razão mais que suficiente para que o busto de Camões aí permaneça sobranceiro na esquina onde até hoje é visível, independentemente do destino do edifício. Só um visionário com bom gosto poderia ter substituído a imagem de Mercúrio pelo belo Busto do nosso Camões. Nesta hora de despedida, prefiro imaginar Camões, mais do que a “tagarelar” com a figura feminina da antiga ourivesaria Reis & Filhos, a declamar um dos seus Sonetos, “A dor da ausência fica mais pequena”:
Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me experimentar, de vós me aparte,
Deixando de meu bem tão grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena,

O duro desfavor, que me condena,
Quando pela memória se reparte,
Endurece os sentidos de tal arte
Que a dor da ausência fica mais pequena.

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Interior da Livraria Latina. Foto de VITOR LIMA

Numa brochura, a que generosamente acedi pelas mãos de alguém ligado à Latina, encontrei os “elementos” que o próprio Perdigão terá fornecido ao jornal «O Primeiro de Janeiro» para a sua biografia: “Com 14 anos incompletos e o 2. ° ano dos liceus, foi (Henrique Perdigão) para o Brasil, ali vindo, em Manaus, a constituir família e a exercer durante mais de vinte anos a sua actividade no comércio. Regressou com carácter definitivo à Pátria em 1923. Desde então, fixou residência no Porto, onde durante vários anos se dedicou à indústria e, presentemente, ao comércio, fundando em janeiro de 1942 a Livraria Latina Editora”. Acrescentaria a este autoconceito, que Perdigão era igualmente um homem culto, possuidor de uma excelente biblioteca e generoso com os escritores. Homem de partilha de conhecimento, quis divulgar escritores brasileiros e lutou sempre pelo estreitamento das relações luso-brasileiras. Prova da sua dedicação à divulgação de autores brasileiros e de traduções não autorizadas no nosso país, foi a sua compra no Brasil de quinhentos contos de livros para os vender na sua casa do Porto e servir outras livrarias da cidade.

Morreu, trágica e prematuramente, aos 55 anos num desastre de aviação, na cidade da Baía, quando regressava do Brasil a Portugal depois de uma viagem que tivera por fim exatamente reforçar os laços de amizade entre os dois países irmãos.


Após a sua morte, Mário Perdigão, seu filho, liderou a livraria durante 50 anos. Manteve a linha de rumo definida pelo pai, continuou o seu projeto editorial e tinha permanentemente à disposição dos clientes livros brasileiros, obras traduzidas em português dos mais famosos autores, bem como livros ingleses e americanos. Não se coibiu também, de afirmar os seus valores democráticos e republicanos, conservando em local próprio livros políticos que vendia debaixo da mesa. Mesmo correndo riscos, Mário Perdigão ousou vender muitos dos livros que a polícia política teimava em apreender, como os da autoria de Cunha Leal, Sebastião Ribeiro, Jorge Amado, Raúl Rego e até de Aquilino Ribeiro. Mário Perdigão teve como seu braço-direito, um funcionário dedicado e competente, Alberto Domingues que muito contribuiu para o sucesso da sua missão enquanto timoneiro da livraria durante meio século.

Fotografia 5 a parede pejada de livros acessiveis pelo varandim
Parede pejada de livros acessíveis pelo varandim. Foto de VITOR LIMA

Quase na viragem do séc. XX, depois da Morte de Mário Perdigão, coube ao seu filho e neto homónimo do fundador, Henrique Perdigão, gerir e reinventar a Livraria Latina.

Respondendo aos desafios económicos e comerciais do novo século, comprou o edifício, restaurou e ampliou a Livraria Latina. Como se pode ler num texto publicado no antigo site da Latina «Depois de ter visto a obra concluída, percebi que a galeria tem um potencial muito maior do que aquele que tinha, inicialmente, imaginado. Tínhamos uma parede com cerca de quatro metros de altura, que fazia a delícia dos turistas, mas que impossibilitava o consumidor de chegar ao livro», confessava na altura da reabertura, Henrique Perdigão. Estávamos em 2005. A Latina recuperava a sua fachada dourada e rosa, e no interior dividida em dois pisos, mostrava-se elegante e funcional, conjugando a madeira clara com o aço. A emblemática parede “forrada com livros até ao teto” mantém-se, porém, o 2º piso, em jeito de varandim, torna os livros inteiramente acessíveis.

Foi esta renovada Latina que conheci e por quem me “apaixonei” desde o primeiro momento. Era uma livraria elegante e tranquila, com uma luz muito própria, sobretudo nos dias luminosos de Verão, onde apetecia ficar a folhear livros espreitando a baixa. Era também um ponto de encontro de leitores e escritores, um lugar de tertúlias e de lançamento de livros com sessões de autógrafos e conversas temáticas e demoradas com gente culta. Recordo ainda a exposição sobre a história da livraria aquando da comemoração dos seus 65 anos e a delicadeza do anfitrião Henrique Perdigão. Sobre este escreveu Sérgio C. Andrade no Público em 30/08/2009 um texto de homenagem póstuma ao livreiro: “Henrique Perdigão era o representante da terceira geração da família que construiu aquela que foi, desde a sua fundação, em 1942, pelo seu avô homónimo, uma das mais activas e afectivas casas livreiras no Porto – é uma das três livrarias com “L” de livros, juntamente com a Lello e a Leitura, que marcam a identidade da cidade neste sector.”
Após o falecimento de Henrique, em 2009, a Latina foi integrada no grupo Leya, que agora tomou a polémica decisão de fechar o local. E assim, no Porto, das três livrarias com “L” resta-nos, unicamente, a Lello. Ficámos mais tristes e pobres…mas, com esperança, como diz o Poeta “Que a dor da ausência fique mais pequena”.

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Vista do interior para o exterior e as portas ainda abertas. Foto de VITOR LIMA
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