Em outubro passado, o nosso colega e amigo Onofre Varela publicou, em primeira mão,no nosso jornal – O Cidadão – que a livraria Latina ia encerrar. Desde aí, retomei amiúde as minhas visitas à Livraria. Fui adiando a escrita, ficou suspensa até hoje, uma crónica que de alguma forma pudesse atestar o espírito e a vida desta casa dos livros. Partilho inteiramente a opinião de Varela: “A Latina é uma das livrarias mais emblemáticas da cidade do Porto, tendo sido fundada em 1942 por Henrique Perdigão que teve a ideia de, naquele espaço, criar mais do que uma livraria: seria um ponto de encontro dos bibliófilos e de simples leitores ou clientes ocasionais.”
Faltavam poucos dias para a comemoração do 83º aniversário!
Foi em janeiro, mas no dia 15 do ano de 1942, num período em que a Europa vivia a II Guerra Mundial e Portugal o Estado Novo de Salazar, em tempos difíceis e de grande instabilidade, que remando em contramaré, na Invicta, um corajoso visionário de nome Henrique Perdigão iniciava o seu projeto e abria as portas da Livraria Latina. Ocupava o número 2 da Rua de Santa Catarina, mesmo ao virar da esquina da Praça da Batalha no seu cruzamento com a Rua 31 de Janeiro. A sua localização augurava um futuro promissor. A Rua de Santa Catarina, atualmente uma das mais conhecidas ruas do Porto de cunho comercial, está desde o seu início, estreitamente ligada aos intelectuais e escritores. Foi aí que nasceu o poeta António Nobre e que, em tempos viveu Guerra Junqueiro. Também aí ficava a casa onde Camilo Castelo Branco e Ana Plácido se casaram em 1888. Uma rua onde Condes, Viscondes e Brasileiros de torna-viagem construíram os seus Palacetes. Num deles, o palacete brasonado de José António de Castro Pereira, posteriormente arrendado ao Liceu Nacional Central do Porto, lecionou Antero de Quental. Outro famoso palacete, do qual já só resta a fachada e que corresponde ao shopping Via Catarina, o antigo palacete de Inácio Pinto da Fonseca foi a partir de 1921 a sede do jornal “O Primeiro de Janeiro”, jornal fundado por intelectuais pertencentes ao movimento político e cívico Janeirinha, em 1868.
Refira-se ainda, no âmbito da toponímia desta rua, que a mesma deve o seu nome ao antigo templo de madeira que fazia parte da quinta de Fradelos, construído em homenagem a Santa Catarina. Após as obras de ampliação e de restauro no início do séc. XVIII, ficou conhecida como Capela das Almas de Santa Catarina. As suas deslumbrantes fachadas, principal e lateral, a partir daí, foram cobertas por 15.947 azulejos historiados da autoria de Eduardo Leite e produzidos em Lisboa, na Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego, representando passos da vida de São Francisco de Assis e de Santa Catarina de Alexandria, a padroeira dos estudantes, professores e pensadores.
O fundador da Latina não poderia ter escolhido melhor localização para berço da sua firma, criada com dupla vocação: livreira e editorial. Henrique Perdigão era um homem culto, viajado, empreendedor e criativo e, estava determinado a revolucionar o mercado livreiro. Sob a sua chancela foram publicados livros de autores tão relevantes como: Teixeira de Pascoaes, Antero de Quental, António Botto, João Gaspar Simões, Ramos de Almeida, Jaime Brasil (sob o pseudónimo A. Luquet devido à censura), Manuel do Nascimento, Fausto Duarte, Keil do Amaral… Orgulhosamente, afirmava nos jornais que tinha o sonho de construir «a mais moderna organização livreira e editorial do País». Na publicidade feita por altura da inauguração da sua casa comunicava que “«desejando comemorar [tal] facto pela forma mais adequada e significativa, resolvemos abrir, desde já, um concurso entre escritores de língua portuguesa, oferecendo o prémio de CINCO MIL ESCUDOS ao autor do melhor romance, classificado por um júri a designar por entidades estranhas e idóneas. Esse romance inaugurará, no género, as novas edições da «Colecção Latina». Estava, desta forma, anunciado o primeiro concurso literário português, o qual foi ganho por José Hermano Saraiva, tendo Fernando Namora recebido uma das menções honrosas. Cinquenta anos mais tarde, Henrique Perdigão, neto homónimo do fundador terá especulado “Se este último – Fernando Namora – tivesse alcançado nessa altura, o primeiro prémio, teria sido provavelmente a Latina a editar a obra daquele que veio a ser o mais popular romancista português.”
A Livraria Latina possuía desde o início uma fachada rosa e dourada, que agora se encontrava mais escurecida e esverdeada. Mas a sua marca inconfundível e original, está no seu frontispício – o busto de Luís Vaz de Camões. Busto encomendado por 700 escudos ao então jovem artista António Cruz, o maior aguarelista português. Perdigão quis ter como patrono da sua casa o nosso maior Poeta e, se até há pouco tempo, parecia que nada ligava Camões ao Porto, a sua última biografia da autoria de Isabel Rio Novo parece sustentar a sólida hipótese de o mesmo ter nascido na Invicta. Razão mais que suficiente para que o busto de Camões aí permaneça sobranceiro na esquina onde até hoje é visível, independentemente do destino do edifício. Só um visionário com bom gosto poderia ter substituído a imagem de Mercúrio pelo belo Busto do nosso Camões. Nesta hora de despedida, prefiro imaginar Camões, mais do que a “tagarelar” com a figura feminina da antiga ourivesaria Reis & Filhos, a declamar um dos seus Sonetos, “A dor da ausência fica mais pequena”:
Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me experimentar, de vós me aparte,
Deixando de meu bem tão grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena,
O duro desfavor, que me condena,
Quando pela memória se reparte,
Endurece os sentidos de tal arte
Que a dor da ausência fica mais pequena.
Numa brochura, a que generosamente acedi pelas mãos de alguém ligado à Latina, encontrei os “elementos” que o próprio Perdigão terá fornecido ao jornal «O Primeiro de Janeiro» para a sua biografia: “Com 14 anos incompletos e o 2. ° ano dos liceus, foi (Henrique Perdigão) para o Brasil, ali vindo, em Manaus, a constituir família e a exercer durante mais de vinte anos a sua actividade no comércio. Regressou com carácter definitivo à Pátria em 1923. Desde então, fixou residência no Porto, onde durante vários anos se dedicou à indústria e, presentemente, ao comércio, fundando em janeiro de 1942 a Livraria Latina Editora”. Acrescentaria a este autoconceito, que Perdigão era igualmente um homem culto, possuidor de uma excelente biblioteca e generoso com os escritores. Homem de partilha de conhecimento, quis divulgar escritores brasileiros e lutou sempre pelo estreitamento das relações luso-brasileiras. Prova da sua dedicação à divulgação de autores brasileiros e de traduções não autorizadas no nosso país, foi a sua compra no Brasil de quinhentos contos de livros para os vender na sua casa do Porto e servir outras livrarias da cidade.
Morreu, trágica e prematuramente, aos 55 anos num desastre de aviação, na cidade da Baía, quando regressava do Brasil a Portugal depois de uma viagem que tivera por fim exatamente reforçar os laços de amizade entre os dois países irmãos.
Após a sua morte, Mário Perdigão, seu filho, liderou a livraria durante 50 anos. Manteve a linha de rumo definida pelo pai, continuou o seu projeto editorial e tinha permanentemente à disposição dos clientes livros brasileiros, obras traduzidas em português dos mais famosos autores, bem como livros ingleses e americanos. Não se coibiu também, de afirmar os seus valores democráticos e republicanos, conservando em local próprio livros políticos que vendia debaixo da mesa. Mesmo correndo riscos, Mário Perdigão ousou vender muitos dos livros que a polícia política teimava em apreender, como os da autoria de Cunha Leal, Sebastião Ribeiro, Jorge Amado, Raúl Rego e até de Aquilino Ribeiro. Mário Perdigão teve como seu braço-direito, um funcionário dedicado e competente, Alberto Domingues que muito contribuiu para o sucesso da sua missão enquanto timoneiro da livraria durante meio século.
Quase na viragem do séc. XX, depois da Morte de Mário Perdigão, coube ao seu filho e neto homónimo do fundador, Henrique Perdigão, gerir e reinventar a Livraria Latina.
Respondendo aos desafios económicos e comerciais do novo século, comprou o edifício, restaurou e ampliou a Livraria Latina. Como se pode ler num texto publicado no antigo site da Latina «Depois de ter visto a obra concluída, percebi que a galeria tem um potencial muito maior do que aquele que tinha, inicialmente, imaginado. Tínhamos uma parede com cerca de quatro metros de altura, que fazia a delícia dos turistas, mas que impossibilitava o consumidor de chegar ao livro», confessava na altura da reabertura, Henrique Perdigão. Estávamos em 2005. A Latina recuperava a sua fachada dourada e rosa, e no interior dividida em dois pisos, mostrava-se elegante e funcional, conjugando a madeira clara com o aço. A emblemática parede “forrada com livros até ao teto” mantém-se, porém, o 2º piso, em jeito de varandim, torna os livros inteiramente acessíveis.
Foi esta renovada Latina que conheci e por quem me “apaixonei” desde o primeiro momento. Era uma livraria elegante e tranquila, com uma luz muito própria, sobretudo nos dias luminosos de Verão, onde apetecia ficar a folhear livros espreitando a baixa. Era também um ponto de encontro de leitores e escritores, um lugar de tertúlias e de lançamento de livros com sessões de autógrafos e conversas temáticas e demoradas com gente culta. Recordo ainda a exposição sobre a história da livraria aquando da comemoração dos seus 65 anos e a delicadeza do anfitrião Henrique Perdigão. Sobre este escreveu Sérgio C. Andrade no Público em 30/08/2009 um texto de homenagem póstuma ao livreiro: “Henrique Perdigão era o representante da terceira geração da família que construiu aquela que foi, desde a sua fundação, em 1942, pelo seu avô homónimo, uma das mais activas e afectivas casas livreiras no Porto – é uma das três livrarias com “L” de livros, juntamente com a Lello e a Leitura, que marcam a identidade da cidade neste sector.”
Após o falecimento de Henrique, em 2009, a Latina foi integrada no grupo Leya, que agora tomou a polémica decisão de fechar o local. E assim, no Porto, das três livrarias com “L” resta-nos, unicamente, a Lello. Ficámos mais tristes e pobres…mas, com esperança, como diz o Poeta “Que a dor da ausência fique mais pequena”.
Colaboradora/Filósofa