Subir a Rua de Belomonte é um exercício de descoberta de um Porto quase desaparecido e que ainda guarda segredos e histórias de outros tempos. Se a maioria dos edifícios estão renovados e servem de alojamento local, há ainda algumas lojas de comércio tradicional que conservam a sua identidade.Tendo atrás S. Domingos e à esquerda a Rua de Ferreira Borges inicia-se aqui a Rua de Belomonte, assim chamada porque no fim – e antes do Largo de S. João Novo onde termina – existia um cruzeiro denominado Padrão de Belmonte. É no nº 54, um pouco acima da antiquíssima Escovaria, que encontramos a loja Francisco Costa & Irmão.
Manoel Costa é filho de Francisco, aquele que foi o fundador da loja em conjunto com o irmão. Desde a infância que está ligado ao negócio. Cresceu a ajudar o pai e o tio, numa altura em que havia bastante movimento e vários empregados, quando eram uma drogaria e os clientes maioritariamente estavam ligados à construção civil e à indústria de móveis.
Em 1948, quando a loja abriu, o comércio era bem diferente e a rua de Belomonte era bastante agitada dada a sua proximidade à rua do Comércio do Porto, à Ribeira e à rua das Taipas. Estava-se num dos centros de comércio do Porto.
Manoel conta-nos que “nos anos 60, o pai, levava as mercadorias à Ribeira. Tudo ia de barco, ou nos rabelos ou em outros, até para o Pinhão, para a Régua…. É que antigamente, o Porto de Leixões não existia. Os barcos vinham lá de fora aqui para a Ribeira. Tudo partia e chegava aqui abaixo. Os navios vinham todos aqui ao Douro.”
Não esconde a nostalgia. Tem saudades desses tempos com muito trabalho e agitação. E reforça: “Porque antigamente o que contava era o rio onde vinham os barcos. Havia, digamos, um semicírculo que começava em cima da ponte, onde viviam as pessoas importantes, os estrangeiros. O semicírculo vinha aqui à rua de Belomonte e ia acabar na Rua das Taipas, que se chamava assim porque era tudo entaipado. Era lá o fim do semicírculo. Onde moravam as pessoas importantes, nessa altura, os ingleses, os alemães que tinham aqui várias firmas, moravam todos nesta zona.”
Manoel, com “o” como o cineasta do Porto, Manoel de Oliveira, frisa para que não haja qualquer possibilidade de troca na escrita e também para enaltecer a nobreza do nome. Fala torrencialmente, adora conversar e fala de tudo com a mesma vivacidade. Conta-nos como a rua de Belomonte atestou os anos dourados do comércio e mostra-nos o seu anuário de 1956 com todas as empresas, firmas e lojas comerciais por rua.
Abre o Anuário para mostrar que só na Rua de Belomonte havia centenas de firmas, são meia dúzia de páginas com o nome de advogados, empresas de exportação, armazéns, cafés, mercearias…. “E começa a falar-nos do prédio da frente. Era um grande armazém que empregava muitas pessoas. Eu lembro-me que um deles veio da Madeira para aqui trabalhar. O Bananeiro. E ao fim de um ano veio falar com o meu pai para lhe dizer que ia outra vez para a Madeira, porque o patrão ia fechar o Armazém. E vai assim o meu pai: Oh Homem mas você é trabalhador, porque é que não toma conta disto? Eu não tenho dinheiro, disse ele. E o meu pai emprestou-lhe dez ou doze contos. O Homem mandou vir a mulher da Madeira, os filhos nasceram aí. E ele começou a trabalhar naqueles carritos de mão, ia vender bananas para a rua escura. Trabalhava de dia e de noite. Era o bananeiro aqui da rua.”
“Tantas lojas e negócios que aqui havia e agora é só casas de turismo local e portas fechadas”. O desabafo traz-nos de volta ao presente, aos resistentes, como o vizinho da escovaria. Interrompe o discurso para mudar de Língua, fala em inglês com um pequeno grupo de turistas que ao ver-nos, espreitam para o interior da loja. Manoel não se faz rogado e chama-os, quer mostrar-lhes a raridade do comércio tradicional e genuíno, que já pouco encontram na cidade. Os seus dias são menos solitários quando os turistas assomam à porta. Passa os dias sozinho. Já só abre o estabelecimento da parte da tarde, pois, os seus clientes chegam pelo telefone e pela internet.
Entretanto, mostra-nos uma fotografia ao lado de Rui Moreira, quando recebeu a placa de “Porto de Tradição” em 2019. Mas, diz que não quer continuar aqui muito mais tempo. Já tem 80 anos. “Se isto se vendesse. Isto está muito mal. A maior parte dos dias eu estou aqui mais para passar o tempo“.
“Este prédio é de um indivíduo e tem cinco andares. Não mora aqui ninguém. Sabe porquê?! Porque quando morrem os velhos, os novos não têm direito à mesma renda. E querem é vender as casas para turismo. Eu pago renda antiga, estou aqui em baixo sozinho, por cima de mim só as pombas…” Diz-nos com ar entristecido. Tem razão. O prédio está bem degradado mas deixa antever a beleza de outrora no rendilhado dos varandins e nas portadas verdes. Os seus olhos brilham quando nos começa a mostrar os frascos de pigmentos: “Pigmentos puros. São belgas. Isto é muito utilizado na pintura. Os artistas e estudantes de belas-artes, alguns ainda vêm aqui.”
Refere com orgulho que forneceu as matérias-primas para o restauro de vários Palácios. Para o Palácio do Freixo, o Palácio de Belém e o Palácio de Queluz, bem como para a Casa da Música e também daqui saíram pigmentos e materiais para restaurar muitas igrejas. Manoel tem clientes de todo o país e continua a ser o fornecedor de materiais para a Universidade Católica do Porto, no âmbito da Licenciatura de Conservação e Restauro.
Espalhados pelas prateleiras velhas de madeira, encontram-se inúmeros frascos contendo pigmentos das mais diversas cores. Também há saquinhos e latas enormes onde os guarda para depois serem pesados e embalados.
Os pigmentos na arte sacra têm um papel essencial na criação de obras visuais que transmitem poder espiritual, beleza e simbolismo. São usados para dar cor às pinturas, esculturas e outros elementos decorativos das igrejas, templos e outros espaços religiosos, tornando as cenas e figuras mais expressivas e vibrantes. Além disso, os pigmentos na arte sacra ajudam a destacar a importância de determinados elementos ou personagens, como santos, figuras bíblicas e cenas do quotidiano religioso.
Em termos simbólicos, as cores frequentemente possuem significados específicos: o dourado, por exemplo, pode representar a divindade e a presença de Deus, enquanto o vermelho pode estar associado ao sangue de Cristo ou ao martírio. O uso de pigmentos também tem a intenção de atrair a atenção dos fiéis, criando uma conexão emocional e espiritual com a arte e facilitando a meditação sobre os temas religiosos retratados.
Manoel remata: “Nós fornecemos os artistas, artífices e restauradores da maior importância para o património material e imaterial do país.” Que assim continue por muitos anos!
Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa