Desde há anos que, na rentrée literária, marcam presença, na publicidade do mercado livreiro, vários novos títulos de ficção «histórica» e de biografia ficcionada. A oferta faz presumir o interesse e procura dos leitores e indicia haver boas perspectivas de lucro por parte das respectivas editoras.
Este interesse em ficcionar a vida, no todo ou em parte, de personalidades reais e com maior ou menor relevo histórico, motiva atenção, mais relativamente quanto a quem compra e lê, do que quanto a quem escreve.
A ficção biográfica – ou como agora mais se diz, o romance biográfico – é muito mais sedutora do que a realidade com a sua banalidade, crueza e asperezas, mesmo quando estas não estão ausentes da narrativa imaginosa. Fuga e viagem tornaram-se há muito lugares comuns na referência ao livro e, em especial, ao livro de ficção. Como refere o escritor basco Kirmen Uribe, «as histórias recolhem os matizes da realidade. E os matizes são o mais importante na vida».
Mesmo assim, do ponto de vista da aprendizagem e do conhecimento, suscita reflexão que se prefira ler uma narrativa imaginária e imaginosa sobre uma personalidade histórica cujo conhecimento apeteça desenvolver, em vez de o fazer através de obras consistentemente fundamentadas em factos reais, tanto quanto as respectivas fontes documentais, criticamente analisadas, o permitem.
E se até estas não escapam, por vezes, à subjectividade de interpretação do investigador, que dizer quando o escritor, num romance dito «biográfico», vai ao ponto de inventar diálogos e monólogos como se a estes tivesse assistido, mais não ficando a conhecer-se senão o que o escritor pensa que o seu sujeito literário pensava ou diria, sem esquecer que em cada época (e muito em especial na actualidade) se incorre frequentemente no enganoso erro de pensar o ontem segundo as concepções do agora.
A esta armadilha soube escapar habilmente o escritor John Banville em O Intocável, obra que se sabe ter sido baseada em aspectos da vida de Anthony Blunt, respeitado historiador e crítico de arte até se descobrir (com grande escândalo) que foi também agente duplo dos serviços secretos britânicos e soviéticos. Blunt e as outras personagens têm outros nomes e o livro pode ser lido como desligado dos factos reais que, apesar disso, também refere.
Uma vítima inequívoca da injustiça da ficção biográfica é o compositor Antonio Salieri. Quem vir ou tiver visto o trepidante e bem sucedido filme Amadeus de Milos Forman (1984) fica com uma ideia completamente deturpada da pessoa e personalidade artística do grande músico veneziano, Kapellmeister da Corte Imperial Austríaca. Salieri não foi o idoso compositor que, roído de inveja pelo êxito do prodigioso Mozart, envenenou este para eliminar a sua suposta concorrência.
Na realidade, o verdadeiro Salieri tinha só mais 6 anos do que Mozart e nunca deixou de o apoiar e ajudar na medida das suas possibilidades. Contribuiu o mais possível para dar a conhecer a música de Mozart na Áustria e no estrangeiro. Foi uma das pouquíssimas pessoas que esteve presente no serviço fúnebre do malogrado colega e foi a ele que Constance, a viúva, confiou o filho Franz-Xaver, após o falecimento do marido.
Resta acrescentar que o argumento do filme de Forman é a adaptação de uma obra literária de Alexander Pushkin: Mozart e Salieri. E as novelas empolgantes vivem mais à custa de vilões do que de sujeitos com bom carácter.
Esta facilidade com que o leitor comum troca com gosto a realidade pela ficção talvez permita explicar que tantos cidadãos se deixem seduzir por narrativas na vida política que mal escondem não passarem de ficção pura e de dramatização empenhada em estabelecer um contraste marcado entre culpados e vítimas, para desviar a atenção dos reais problemas ou para conseguir votos.
Jurista