Costuma dizer-se que o problema dos miúdos de hoje é o telemóvel. Que andam sempre de cabeça baixa, olhos vidrados no ecrã, dedos a deslizar em gestos quase automáticos. Mas será mesmo o telemóvel o vilão desta história? Ou seremos nós, mães e pais, que fomos fechando portas ao mundo e levantando muros invisíveis à volta da infância?
As crianças não deixaram de brincar na rua porque perderam a vontade. Foram os bairros que se fecharam em garagens automáticas, as cidades que expulsaram as crianças para dentro de casa, os medos que cresceram e os vizinhos que deixaram de se conhecer pelo nome. A comunidade virou as costas às nossas crianças.
A rua, que outrora era a nossa escola de vida, foi substituída pelo quarto, pelo sofá. O jogo coletivo, como jogar à macaca, à bola, ao berlinde foi trocado pela aplicação individual – e pior, pelo isolamento. E será que a responsabilidade é de uma tecnologia que existe há pouco mais de uma década? não: é de uma sociedade inteira que desaprendeu a confiar, a partilhar, a responsabilizar e a deixar viver.
A memória, volta e meia, leva-nos às tardes soltas depois das aulas e só regressarmos quando o sol já se despedia. Aos caminhos percorridos a pé para a escola, muitas vezes em grupo, outras vezes sozinhos, a sentir a liberdade.
As ruas esvaziaram-se de gargalhadas infantis. Os jardins têm baloiços solitários. As bicicletas ficaram encostadas às garagens.
Em nome da segurança, do medo ou do controlo, fechámos os filhos em casas confortáveis, sim, mas demasiado apertadas para a criatividade. E, quando o tédio bate à porta, damos-lhes o telemóvel, como quem oferece um mundo embalado em papel de seda.
Não é que o telemóvel seja mau em si. É apenas o substituto que arranjámos para a liberdade que lhes tirámos.
O ecrã não roubou o lugar da rua; fomos nós que deixámos de confiar na rua. Criámos a ideia de que o perigo espreita em cada esquina, mas esquecemo-nos de que, na infância, também é preciso aprender a enfrentar riscos, a resolver conflitos, a cair e a levantar.
Um telemóvel pode entreter. Mas é na rua, no jogo improvisado, na caminhada até à escola, que se aprende a viver. Se queremos que os nossos filhos olhem para o mundo com curiosidade e coragem, temos de lhes devolver aquilo que sem querer lhes roubámos: a infância em liberdade.
Talvez não seja justo culpar a tecnologia, quando o problema está mais fundo: está na nossa incapacidade de aceitar que os filhos cresçam, que tenham autonomia, que construam memórias fora do nosso olhar vigilante.
O telemóvel apenas ocupa o vazio que nós, adultos, criámos. E depois escandalizamo-nos porque as crianças já não sabem brincar. Mas como poderiam saber, se nunca lhes demos a liberdade de o fazer?
Temos que concordar que vivemos numa sociedade que valoriza a vigilância, o controlo, a produtividade. Uma infância livre não encaixa neste modelo.
Mas… se isto for um problema, ele não é certamente das crianças, mas sim de todos nós – das nossas escolhas, das nossas prioridades e do medo com que educamos.
E enquanto continuarmos a apontar o dedo ao ecrã, continuaremos a falhar no mais básico: devolver às crianças o direito de serem crianças.

Professora e Escritora