Convido os leitores para me acompanharem num exercício de imaginação, criando um argumento para cinema.
Imaginem que num estabelecimento prisional de alta segurança – para onde são enviados os mais temidos inimigos públicos que a sociedade condenou por serem os autores dos piores e mais desumanos, abomináveis e hediondos crimes – os enclausurados usam das amplas liberdades que em Democracia se dá a toda gente (incluindo nessa gente as piores pessoas) para convocarem um plenário.
Reunido aquele bando de presidiários, promove-se um acto eleitoral para se votar a possibilidade de os guardas prisionais continuarem no exercício das suas funções ou, pelo contrário, se devem ser expulsos daquele estabelecimento prisional.
Contados os votos constata-se que a expulsão dos guardas colheu 100% dos votos, pelo que se procedeu ao despedimento imediato dos guardas prisionais, deixando todos aqueles bandidos livres das penas que cumpriam… sem guardas e com as portas da cadeia franqueadas.
A partir daquele momento podem fazer o que quiserem… sendo que o “que querem fazer” é a total subversão dos códigos comportamentais da sociedade que os prendeu, mas que agora é gerida pelos vencedores daquele acto eleitoral que obedeceu a todas as regras democráticas (a Democracia tem disto… abre as portas dos Parlamentos aos seus inimigos que a destroem por dentro).
Porque (no enredo ficcional desta nossa história) aquele acto foi legitimado por eleições democráticas universais, todos os prisioneiros tiveram direito a um voto, independentemente da desumanidade que protagonizaram e que por isso estavam presos, e exerceram o seu direito dentro da lei configurada no argumento do filme.
A partir daí, a razão está com os inimigos públicos que deixam de ser enclausurados para passarem a ser “os donos da verdade” e daquele espaço que agora é seu.
Pois bem: nesta historinha de ficção, os guardas prisionais são os construtores da Democracia instaurada com o 25 de Abril de 1974, o estabelecimento prisional é Portugal, e os enclausurados que deixaram de o ser para passarem a ter a razão de existir conforme os seus desejos – agora legitimados por eleições democráticas – são todos os extremistas que por aí fazem ninho!
Passando da ficção para a realidade, sabemos haver quem vote, quem não vote e quem vote em branco ou invalide o seu voto com gatafunhos ou insultos. A razão mais sadia que leva o eleitor às urnas para votar – e que deveria ser a natural e vulgar para toda a gente – é a consciência de escolha e a honestidade política e social de cada eleitor. Nesse sentido, a frase “o voto popular legitima”… é uma figura de estilo que decora a bandeira democrática… mas que numa análise mais atenta causa-me dúvida.
Primeiro é preciso saber se quem votou soube o que fez… (na ficção do nosso exercício de imaginação, podemos responder que sim… que os prisioneiros souberam escolher muito bem o que queriam, que era a sua liberdade total sem se preocuparem com a justeza da sua libertação… e esquecendo os direitos de todos os outros cidadãos!…).
Nas eleições reais, não ficcionadas, é necessário saber-se se o eleitor leu o programa do partido no qual votou, se tem intelecto para o perceber e se concordou com ele; se votou por escolha consciente da realidade social em que vive, ou se por odioso protesto contra algo ou alguém; se entende o país que é seu, se conhece a sua História e as suas fragilidades, ou se apenas aprecia o seu umbigo emoldurado com o caixilho quadrado do seu pensamento quadrado, e se vota “contra algo ou alguém” e nunca a favor de uma causa que numa sociedade moderna seja considerada justa.
Nas últimas eleições legislativas, no discurso de “vitória” da extrema-direita, ouvi o seu líder dizer, na convicção de que ia ser governo (!?): “Os últimos 50 anos são para esquecer“. Esta frase não é “uma figura de estilo” nem é inocente. Com ela pretende-se dizer que é preciso esquecer a Democracia! Logo, é para esquecer o 25 de Abril que nos deu a liberdade democrática há 50 anos, e para lembrar o Estado Novo de Salazar e da máxima “Deus, Pátria e Família”. E é para não lembrar tudo quanto de mau a ditadura provocou, incluindo a morte, a prisão e a tortura dos seus críticos que defendiam a Democracia, a Liberdade e a Igualdade de tratamento.
No limite das especulações deste nosso exercício de imaginação que vos proponho, os extremistas podem fazer e dizer o que quiserem, porque têm a perfeita noção de que jamais serão governo e por isso não terão contas a prestar a ninguém. O que importa é dizer mal de tudo. Dizer o que muitos jovens (e alguns menos jovens) gostam de ouvir e de dizer para satisfação própria: falar por falar, sem medir a extensão social das palavras proferidas. Falar contra tudo, nem que seja contra si próprio, pois não sabe o que defende quando defende ideais extremistas. É o deitar abaixo sem planos de colocar em cima.
Quem faz promessas como: confiscar os bens dos arguidos (sem se saber se são inocentes ou culpados); proibir o aborto; implementar a pena de morte e a prisão perpétua, mas não admitir a eutanásia; defender a castração química sem perceber que o acto sexual criminoso não está no pénis nem nos testículos, mas sim no cérebro; expulsar os imigrantes; criar reservas territoriais para os ciganos; enviar os negros para África; provavelmente, cortar as mãos aos ladrões e pregar a Bíblia no Parlamento… quiçá, legislar para que seja obrigatório assistir a missas!…
Há muita gente que, comprometida com a ignorância histórica, defende o tempo anterior ao 25 de Abril, mas que nada sabe sobre aquilo que defende… nem, tão pouco, sabe se defende… mas vota a favor dos inimigos da Democracia!… É assim que se elegem ditadores que depois nos enjoam e enojam… mas já não vamos a tempo de emendar o erro.
Em vez de nos arrependermos pelos erros cometidos, o que é necessário é evitá-los. E os nossos eleitores devem pensar no erro já cometido ao darem votos a quem se mostra desumano. É recente (de 19 de Junho) um discurso do líder da extrema-Direita Parlamentar (para lamentar!…) cujos quatro projetos-lei para as Migrações foram chumbados. Não teve vergonha de afirmar: “connosco podem ter a certeza de uma coisa: não haverá humanismo que resista”.
Quem se mostra contra o Humanismo, que tratamento merece? Vamos tratá-lo desumanamente?!…

Jornalista/Cartunista