É com muito gosto que retorno ao desabafo em forma de crónica jornalística.
Como foi possível compreender através do último artigo, sou médica veterinária e sinto-me privilegiada por ter uma profissão que me permite ter mil e uma histórias, pensamentos e opiniões opinativas (redundância propositada), para partilhar.
No entanto, sinto que os médicos veterinários deviam desabafar mais, “deitar cá para fora”, “cuspir as maleitas”, como diz o povo entre bocas. Somos diariamente desafiados a ser levados ao nosso limite, muitas vezes de forma consciente e aceite por nós, mas na maioria delas só nos apercebemos quando o desgaste já trespassa o físico, quando vai além das olheiras, das dores nas costas e das varizes nas pernas.
Não é a profissão “das festinhas” ao labrador bebé ou à ninhada de Scottish Fold que vai fazer a primeira vacinação. Não é a profissão “que corta as unhas e limpa os ouvidos” ao Jack Russel malcomportado.
Somos bem mais que isso!
Somos os doutores que só “pensam em dinheiro”, que a saúde dos animais “é um negócio” e que “ganham à comissão” por eutanásia, como é óbvio… Infelizmente são expressões que não me surgiram simplesmente no pensamento. São expressões que ouço na minha rotina de profissional de saúde. E tão boas que são de ouvir….
Mas não quero que pensem que nutro algum tipo de arrependimento ou ódio por aquilo que faço. Longe disso!
É um desafio diário, um vaivém de sensações que ora nos deitam ao chão, ora nos levantam com dez vezes mais força. Compensa sempre cruzar-me com tutores que valorizam o nosso trabalho, que observam e agradecem a dedicação que entregamos aos seus animais, aos seus membros da família.
Um obrigada a todos!
E um obrigada a todos os meus companheiros de profissão, pelas horas e horas extra, pelos períodos de jejum, por não terem rotina de sono, por continuarmos a lutar pela nossa saúde mental!
Vamos desabafar mais.
Bom, mas mudando de assunto e mantendo-me em modo desabafo, hoje gostaria de falar sobre “o ato de passear o cão”.
Parece simples, não é? Pegar na trela, prender o patudinho, não esquecer dos sacos do cocó e seguir caminho, mas não, não é simples.
A parte da trela, pelo menos.
São inúmeras as vezes que, quando estou a passear o meu cão, tenho os nervos a escorrerem-me entre poros da pele. Os mesmos nervos que atravessam a trela e chegam ao meu cão. O meu cão usa-os irracionalmente para ladrar e tentar morder o Bob do senhor Zé que passeia livremente sem trela.
Nesse momento os meus ouvidos ouvem, entre latidos:
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- “não se preocupe que ele não faz mal”.
Ou quando é a Nina da dona Maria:
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- “ela é fêmea, não há problema” .
Ou o Boris do tio Vitor:
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- “ele está treinado, não morde”.
Enquanto estou a puxar o meu cão reativo na direção oposta aos que passeiam sem trela, dou por mim numa aula de Karaté; um braço esquerdo esticado para direcionar o meu cão para um lado, enquanto a minha perna direita faz um ângulo entre 45 e 90 graus para afastar os Bobs, Ninas e Boris, para o outro.
Posto isto, passear o meu cão torna-se, na maioria das vezes, uma aula de artes marciais de nível avançado.
Apelo, portanto, a todos os tutores de cães, por mais dóceis e treinados que sejam, para colocarem a trela ao vosso cão. Nunca sabemos como é o animal que passeia ao nosso lado. Nunca sabemos se uma distração os faz correr para uma estrada com carros a circular.
“Vamos prevenir para não termos que remediar”, como diz o povo entre bocas.
Em relação ao tema “Qual é a função dos sacos do cocó?”, deixo para outro desabafo… Espero que tenham gostado. Voltamos a encontrarmos em breve para mais crónicas veterinárias.
Médica Veterinária