É preciso falar de pobreza. Ela prolifera a olhos vistos nesta sociedade desarmónica. A indiferença com que o poder político trata os mais pobres e vulneráveis é desrespeitosa. A maioria está neste barco e sente-se à deriva.
Continuamos a ter grupos familiares em que existe uma preponderância relativa dos idosos e registam um maior aumento da sua taxa de pobreza. Mas o problema alastra-se às famílias unipessoais e monoparentais onde a taxa de pobreza tem vindo a subir.
São estes tipos de família que permanecem como as mais vulneráveis às situações de carência.
São precisas medidas socioeconómicas mais musculadas que façam frente às múltiplas dificuldades dos cidadãos. Medidas concertadas e conscientes; não precisamos de remendos num tecido, já por si, esburacado, tapando o sol com a peneira. Precisamos sim, de um olhar enérgico e de baixo para cima; mudar atitudes e interesses.
O nosso dia a dia não pode continuar a ser um sufoco. Não podemos continuar a viver ombro a ombro com situações quotidianas que nos ferem a dignidade.
Um povo dorido e subjugado não encontra forças para gritar que tem fome.
Há dias em que os tormentos e tristezas dos outros, são também os nossos, como se nos roubassem o oxigénio…
De frente para a prateleira do pão desfiou um rosário de impropérios, bem à portuguesa e cá para mim, merecidos. Queixava-se do preço do pão – base de sustento de tantos, das subidas constantes, da reforma que não dava para nada. Das vezes que queria um pouco de carne e não podia comprar.
Da pobreza a que já estava habituada e da doença que se agravava e lhe consumia os dias – desabafou num lamento que lhe saltava da boca, num rasgo desalentado.
“A minha reforma vai quase toda para a renda, o resto do mês come-se fiado…medicamentos, só quando tenho muitas dores…”.
Fiado, um termo que pensava esquecido, depositado num tempo difícil da nossa história. Voltei em segundos, à mercearia da minha infância e ao livro de capa preta, comprido, besuntado de nódoas onde desfilavam números, arredondados, sem pontos ou vírgulas. Ali naquelas páginas pautadas quase jaziam vidas suspensas.
É esta vulnerabilidade que circula nas veias de quem se vai arrastando e (des)vivendo um presente sem eira. Porque o futuro é um amontoado de sombras.
O saco de plástico que segurava na mão, continuou vazio de esperança e apenas meia dúzia de carcaças se aninhavam no fundo de uma revolta atordoada.
“Costumava levar mais pão para os netos… hoje não posso…” E a vida vai-lhe morrendo aos poucos…
Uns míseros cêntimos apertados nas mãos ossudas pagariam uns míseros pães…
Impossível ficar indiferente às lamentações que são de uma grande maioria e não bradar os mesmos impropérios contra quem não respeita os seus filhos. Filhos de uma nação que cumpre com os seus deveres e vê defraudados os seus horizontes, por muito curtos que eles sejam.
Que íngreme o caminho, dos que não têm voz e sucumbem nas bermas do poder!
Ter conhecimento destas situações e calar-me é compactuar com o insano. Vivenciá-las diariamente encaminham-nos ao receio que as coisas persistam.
Professora e Escritora