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Terça-feira, Novembro 5, 2024

Touradas: os aplausos de quem consente a barbárie sangrenta – Por Abílio Ribeiro

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Abílio Ribeiro
Abílio Ribeiro
Jornalista

1) Nos últimos 8 anos, 562 pessoas foram condenadas em Portugal por maus-tratos a animais. E, entra estas, não consta qualquer interveniente envolvido nas corridas de touros. Não é um contrassenso. É, antes, o reflexo da legislação existente, pois estamos perante uma atividade amplamente protegida por decretos e despachos. A tourada, enquanto “espetáculo de natureza artística”, é fiscalizada. E há normas que asseguram a segurança, a higiene e o conforto das praças de touros. Ou até mesmo as condições para a criação e transporte dos animais.
As touradas (definidas como “espetáculo público e cultural”) têm assim enquadramento legal no contexto das “artes performativas”, legitimando-se a sua continuidade em prol do “respeito por uma tradição secular”. Existem ressalvas (contam-se pelos dedos das mãos, mas a verdade é que existem). Está definido, por exemplo, que a idade mínima para assistir às touradas é 12 anos. E que a participação em atividades tauromáquicas se encontra vedada a menores de 16 anos. Portanto, e excetuando a morte na arena, ao touro não resta mais nada senão sujeitar-se a (quase) tudo.

2) Os anos passam e, ainda assim, o primitivismo não tem fim à vista. Valha-nos alguns sinais, que vão surgindo, de um certo progresso civilizacional. Viana do Castelo, Braga, Póvoa de Varzim, Sintra, Odivelas e Cascais são exemplos de municípios que, com determinação, tomaram posições públicas contra os “espetáculos tauromáquicos” – e que, por conseguinte, impuseram a não utilização de espaços públicos ou limitaram os apoios financeiros para o efeito. Mesmo que prevalecendo a legislação aplicável a todo o território nacional.
Quem defende as touradas está no seu direito, assim como quem não as defende também goza de tal liberdade. O que se recomenda é que tanto uns como outros façam uso da racionalidade. Argumentar que as touradas têm uma longa tradição em Portugal nem sequer conta como argumento. E enquadrá-las como “expressão cultural e artística” (que deve ser preservada), ainda muito menos. Ou até mesmo que a tauromaquia promove a conservação de raças autóctones.
As corridas de touros são, em primeira instância, uma questão ética. O sofrimento infligido aos animais é visível e indesmentível. Trata-se de crueldade em estado puro. Paga-se para ver isto e aplaude-se por isto. Até nos circos, e por muito menos, fez-se marcação cerrada à utilização de animais, com a produção de legislação.

3) Ao contrário do que alguns pretendem contradizer, a atividade tauromáquica em Portugal comporta custos que nos saem dos bolsos. Há, por exemplo, autarquias a investirem milhares de euros em cada tourada, comprando bilhetes que depois são oferecidos às populações (como forma de assegurar a presença de público). Num caso concreto, o valor investido numa única corrida de touros ronda os 10 mil euros.
É o dinheiro dos contribuintes que também financia clubes taurinos e escolas de toureio (noutro caso concreto, o valor anual financiado a uma determinada escola atinge os 60 mil euros). As ganadarias não fogem à regra, graças a uma legislação que, sem distinguir bovinos destinados à produção de alimentos (leite/carne) dos bovinos de lide (i.e., sem especificação de raças), permite atribuir apoios e financiamentos comunitários. Existem, inclusive, criadores de touros que acedem a fundos europeus por boas práticas no que toca à proteção dos ambiente e combate às alterações climáticas. É de se lhes tirar o capote.

4) Por tudo isto e muito mais, interessa a quem se fez à vida que os movimentos a favor das touradas se façam ouvir. Enquanto cidadãos atentos às “artes performativas” e às iniciativas de índole “cultural”, podemos fazer escolhas (ir ou não a uma corrida de touros). O mesmo não se pode afirmar acerca da atrocidade subjacente, num espetáculo cujos holofotes estão apontados para o sangue derramado. Um hino à violência, que não pode ser promovido sob a égide da democracia, como alguns apregoam acerrimamente. Até o Conselho Geral Independente da RTP incluiu o bem-estar animal nas suas linhas estratégicas – e, como tal, a estação pública de televisão não transmite touradas.
O dinheiro investido em corridas de touros deveria ser redirecionado para programas de proteção animal (há associações dedicadas a animais abandonados que sobrevivem no limite), projetos culturais e agregadores (há bairros que estão a transformar-se em guetos, sem terem sequer um jardim, parque infantil, biblioteca), educação (continuam a existir escolas sem condições nem recursos), saúde pública (ir ao serviço de urgência quase que passou a requerer marcação prévia), inclusão social (é cada vez maior o fosso entre os que podem ter e os que se limitam a sonhar). Não é utopia; é, antes, uma questão de definir prioridades.

5) Sexta-feira, 4 de outubro. O dia que ficou marcado pelo chumbo do Parlamento ao referendo sobre a abolição das touradas. Também aqui houve uma opção – neste caso, a de decidir que colocar a deliberação na mão dos cidadãos seria demasiado ousado. “Inconstitucional”, alegaram uns. “Já fui forcado”, disse mesmo um deles. Ditam assim as circunstâncias que as corridas de touros continuarão a ser financiadas pelos contribuintes, promovendo-se uma prática arcaica e descabida de sentido. Não por acaso, aliás, a extinção das touradas tem sido objeto de amplo debate. Aconteceu também no dia 4, mas do mês de Agosto, em 1821. Já nessa altura Borges Carneiro, autor do projeto-lei, descrevia os espetáculos tauromáquicos como “contrários às luzes do século e à natureza humana”. Teixeira Girão, deputado, acrescentou: “bárbaro divertimento (…), traição em inutilizar aos touros as armas que lhes deu a natureza” e uma “crueldade e cobardia em atormentá-los depois”. Volvidos 200 anos, o medo da mudança em direção ao progresso continua a ensombrar-nos. Não só dá pena, como mete dó. Merecíamos muito mais do que isto.

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