Já não há mercado, mantém-se o bonito coreto e o jardim romântico onde os mais idosos aproveitam as tardes de sol e as mesas de pedra para jogarem cartas. No topo norte da Praça começa a rua de Costa Cabral. É a rua mais extensa do Porto. Antes era conhecida como estrada da Cruz das Regateiras, porque era aí, que se cobravam os impostos sobre os produtos que entravam na Invicta, e as vendedoras que vinham de Valongo ou de Penafiel regateavam com os fiscais o preço a pagar sobre os seus bens.
E é precisamente na rua de Costa Cabral com o nº. 52, num edifício ainda desses tempos idos, meados do século XIX, que se encontra “A Cafezeira” estabelecimento, originalmente designado por “O Chinêz”, fundado em 1929 por João Couto.
Uma loja onde a tradição ainda é o que era, mas que soube evoluir com os clientes, apesar da concorrência feroz do mercado capitalista, mantendo para lá da decoração, a genuinidade do atendimento personalizado e a qualidade dos produtos. Dos primórdios da mercearia encontramos ao fundo da loja, os painéis que preservam as pinturas sobre vidro com o nome do estabelecimento original – O Chinêz – ladeado pelas inscrições “chá” e “café” erguendo-se sobre duas figuras de cariz exótico e oriental, uma feminina japonesa e outra masculina de um indígena africano.
Alcinda, a nossa anfitriã e filha da atual proprietária Maria da Conceição Soares Campos Dias, enquanto nos descrevia a decoração ia afirmando que “basicamente, a raiz da mercearia é o café. Antes tinha alguns chás, nomeadamente o dente leão, que ainda me lembro. Especiarias e amendoim. Tudo o resto, foi a minha mãe que acrescentou, à medida que as pessoas iam pedindo, como ainda hoje”.
Esta mercearia fina especializada em café e chás, é uma das lojas quase centenárias que tem sabido adaptar-se aos novos mercados. Não é o mercado turístico que faz aumentar a clientela, dado que nesta área estamos um pouco fora dos roteiros turísticos da baixa. Esta é ainda uma zona genuína onde se faz vida de bairro. Toda a zona do Marquês e de Costa Cabral vive um ambiente muito próprio, com bastantes transeuntes, num frenesim próprio das gentes do Norte. Repleta de comércio tradicional e de habitações com fachadas revestidas a azulejo, com pormenores que merecem atenção nas varandas de ferro, nas suas portas e janelas trabalhadas. Há por aqui sempre movimento e, apressado. Donde, são os locais, os residentes mais próximos ou aqueles que passam o seu quotidiano profissional por ali perto, os melhores clientes da casa! E é nos clientes que encontramos o fenómeno de geração em geração. Alguns destes clientes vêm do tempo do Sr. Couto, porém, a maioria já são clientes de Joaquim Dias e Maria Conceição Dias, os pais de Alcinda, os proprietários que em 1985 adquiriram a casa ao Sr. Couto.
Não deixa de ser interessante, a fidelidade destes clientes. Uns começaram a vir em crianças com os pais e agora já são clientes e também se fazem acompanhar pelos filhos. Uma fidelidade aos produtos e às tradições familiares. Contribui para isso, o atendimento personalizado e atencioso. Os clientes da D. Conceição recordam a sua simpatia e atenção no atendimento, a sua constante vontade de querer agradar encontrando os melhores produtos. Foi com a D. Conceição que a loja ganhou mais alma e variedade.
Atrás do balcão de madeira e quase a cobrir a parede esquerda na sua totalidade, nos altos armários desfilam as gavetas quadradas num amarelo-pálido a lembrar a nostalgia de outros tempos. Cada gaveta permite ver pela sua frente em vidro, os produtos. Parece um painel colorido pintado como uma roda de alimentos saudáveis com uma organização muito própria. Temos o conjunto de gavetinhas das farinhas; desde as farinhas de milho, á de alfarroba, passando pela de arroz, de mandioca, de aveia… um pouco mais à esquerda surgem os frutos cristalizados ou desidratados, as ameixas, hibiscos, gengibre, entre outras! Ao fundo em pequeninos sacos toda uma panóplia de especiarias. E no extremo oposto há as fileiras dos chás embalados.
Em “A Cafezeira” há também uma caixinha de memórias onde são guardados testemunhos de clientes. Entre eles encontrámos o de uma antiga cliente, Fátima Candeias que descreve a loja dos seus tempos de infância e o Sr. Couto como “homem entroncado, quase sem pestanas e sem sobrancelhas, de tão louras que eram, de mãos grossas e voz um pouco rouca, que andava sempre muito afobado, num corrupio a pesar, moer, ensacar café para os seus clientes, porque não tinha ninguém que o ajudasse.”
Não admira, é sabido que os portugueses sempre gostaram de café! E esta é uma bebida democrática, embora tenha antecedido a verdadeira democracia no nosso país, pois, várias gerações têm a lembrança da casa dos avós, das tias e dos pais com cheirinho a café logo pela manhã! E não interessa se é o cheiro do café puro, do café de mistura ou da cevada. Estamos presos às memórias desse cheiro! E dentro da Cafezeira somos transportados a essas memórias enquanto somos atendidos, na maioria das vezes, pela D. Rosa. Um momento mágico que podemos saborear e inalar, sempre que a D. Rosa recorre aos velhos e elegantes moinhos, bem conservados com esmero e cuidado, para moer o café e, em seguida o misturar na tina, ali bem á frente do nosso nariz, ficamos inebriados e recuamos ao tempo de outros afetos.
Parece que em minutos vemos a avó a fazer o café de filtro na cozinha, ou estamos de novo sentados no almoço de Domingo e vemos chegar o tabuleiro com as chávenas de porcelana, ou andamos a correr á volta da mesa e recebemos biscoitos ou bolachas molhadas em café… São as lembranças que perseguimos durante este ritual, comuns há maioria dos clientes, que também trazemos com a porção de café adquirida! E, seja qual for a atual forma de o preparar em casa: na cafeteira italiana, na máquina de filtro, na prensa francesa ou até na máquina expresso ou na de cápsulas, uma coisa é certa, na Cafezeira encontramos todos os tipos de blends ou misturas de café. Sejam os suaves ou os mais fortes, mais amargos ou mais doces… tudo de acordo com a preferência de cada pessoa, aptos a dar energia e a despertar os sentidos.
Os blends têm segredo! Não sabemos se estão guardados a sete chaves, mas temos a certeza de que alguns estão escritos num papelinho. Pois, no testemunho de Fátima Candeias há a revelação que o seu pai escolheu com o Sr. Couto “os lotes de café que pretendia misturar, quer para o “café forte”, quer para o “café de todos os dias” (…) que hoje se chama café de mistura. Essa seleção feita pelo meu pai e pelo Sr. Couto ficou escrita num papelinho. Quando o Sr. Couto passou a loja à D. Conceição, entregou-lhe o papelinho. Ainda hoje os cafés que compro na Cafezeira são esses do papelinho.”
E para aqueles que não bebem ou não apreciam café, que também os há ainda que em minoria, há o cantinho igualmente apetecível dos chás e das infusões e todos os outros produtos que se podem levar para casa em saquinhos reutilizáveis…
Tudo se vende a granel ou avulso. E nos dias de hoje, esta é uma preocupação devido à necessidade de evitar o desperdício de alimentos e materiais de embalagem, e é também importante para a sustentabilidade do planeta. Assim, comprar a granel não só é mais económico como também é uma maneira de ser mais amigo do ambiente. Talvez por isso, haja novos clientes, mais jovens e mais conscientes relativamente ao consumo. No entanto, como afirma Alcinda “a maioria dos clientes estão na casa dos 55, 60 anos…embora já comecem a vir casais novos, mais jovens, são ainda poucos.”
No Natal, os frutos secos passam a ser as estrelas da casa, como nos referiu a D. Rosa, desde há bastantes anos o braço direito da D. Conceição, “os frutos são nacionais e de fornecedores antigos da D. Conceição – os figos vêm do Douro, as Amêndoas de Moncorvo, Nozes de Vidago e as famosas ameixas de Elvas e o pinhão é todo nacional.” É à D. Rosa que as crianças que passam, cumprimentam da porta. Algumas querem perceber como é que ela entra na loja, pois, o balcão em forma de “L” é todo corrido e guarda uma “porta secreta” que aguça a curiosidade dos petizes, tal como os rebuçados e os bombons lhes espevitam os olhos.
É sob o tampo de vidro do balcão que se expõem, de acordo com as quadras festivas, ora os melhores frutos e bombons, ora as mais variadas amêndoas da Páscoa.
E a terminar, Alcinda remata que é preciso estar “continuamente a inovar e a dar continuidade ao processo de criação também. Agora estamos a pensar na construção do site. Porém, um site implica ter um café de venda ao público, o qual compreende toda uma série de embalagens. É Diferente! E também estamos a pensar em criar um novo blend.”
Desafios, que a experiência e a autenticidade destas mulheres da Cafezeira, ajudará a responder certamente, porque nesta casa oferece-se uma experiência de compra única que valoriza a tradição, a qualidade e o saber antigo, tornando-a um local especial e acolhedor.
Colaboradora/Filósofa