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Quinta-feira, Outubro 9, 2025

O Conforto da Ilusão – Por Rui Rodrigues

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Fala-se muito de mérito. Talvez demais.

Honestamente, começo a achar que é apenas mais uma palavra que usamos para nos sentirmos em paz com o mundo.

Dizem aos jovens que basta o seu esforço. Que quem trabalha mais, vai chegar mais longe. Que o mérito é simplesmente uma questão de vontade.

Digam-me quantas vezes já viram alguém chegar longe apenas pelo seu esforço? Quantas vezes o mérito venceu o nepotismo, o favoritismo, a conveniência?

O mérito, no mundo real, é quase sempre uma corrida desigual disfarçada de justa competição. E isso traz-me tristeza. Ver gente inteligente a acreditar no mito como se fosse lei, quando na verdade é só uma narrativa muito bem formada para manter tudo, tal como está.

Nas minhas aulas de economia, o mérito tem rosto, tem voz e tem cansaço.

São jovens que trabalham e estudam. Jovens que acreditam que estudar é o único caminho possível para conseguirem respirar um pouco de futuro. E, entre eles, há alunas, muitas, brilhantes, disciplinadas, incansáveis. Que infelizmente, já nascem com o peso da prova constante.

Já repararam como nelas o erro é mais caro? Como a exigência é maior? Como o silêncio é cobrado? Eu vejo isso todos os dias. E digo-vos com toda a honestidade, o mérito delas não é privilégio, é sobrevivência.

O ensino profissional é o retrato cru deste país.

Onde o talento tem rugas prematuras, tem calos nas mãos, tem pressa e urgência!

Estes jovens não estudam por luxo, estudam porque sabem que o mundo não vai esperar por eles.

Dizemos-lhes “quem quer, consegue”.

Mas esquecemo-nos, por vezes, de lhes dizer que há quem consiga sem querer muito e, há quem queira o mundo, e mesmo assim não tenha hipótese.

Vocês, que estão a ler isto, sabem que é verdade.

Quero que os meus alunos compreendam que o mérito não é o troféu que vão obter no fim da corrida. É o percurso, o esforço, as quedas que ninguém viu acontecer. Quero que saibam que o sucesso sem justiça é privilégio em pele de virtude.

Vejo o futuro deste país sentar-se à minha frente todos os dias.

Tem sotaques diferentes, histórias próprias, fragilidades e vulnerabilidades, mas uma vontade de vencer que assusta.

Vejo talento. Mas vejo também o medo de não serem suficientes.

Vejo o peso de um sistema que exige excelência de quem nunca teve, nem tem, tempo para falhar.

A meritocracia é um mito confortável.

Serve para os que estão em cima dormirem melhor e para os de baixo acreditarem que a culpa é deles. Mas quem vive no mundo real sabe perfeitamente que o mérito só é real quando todos têm as mesmas condições para o disputar. Enquanto isso não acontecer, o mérito continuará a ser o argumento preferido de quem já nasceu a repousar na meta.

E é por isso que sinto necessidade de falar acerca disto.

Porque acredito, profundamente, que o país que quero ver nascer não é o que aplaude os vencedores do costume, os previsíveis. É o que cria condições para que todos, sim, todos, tenham a digna possibilidade de vencer por mérito e não por sorte da sua origem.

E se, ao leres isto, sentiste desconforto, ainda bem. O desconforto é o primeiro sinal de consciência.

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