Ouvir o discurso da Lídia Jorge no 10 de Junho foi, para mim, um momento raro.
Raro pela coragem. Raro pela lucidez. Raro pela frontalidade com que nos devolve a imagem de um país que parece preferir mitos à realidade.
Muitos viram ali simplesmente um discurso político, eu vi sobretudo uma provocação necessária para o mundo do empreendedorismo.
Porque empreender, ao contrário do que tantas vezes nos fazem crer, não é apenas abrir empresas ou criar produtos.
Empreender é assumir um lugar ativo na construção do futuro. E para isso, é preciso conhecer o passado. É preciso, como disse a escritora, reconhecer que somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Que não há ideias neutras. Há escolhas. E há responsabilidade.
Vivemos tempos em que o empreendedor é glorificado como um herói a título individual, um criador de riqueza e a solução para todos os males.
Na realidade, não basta ter uma boa ideia. É preciso saber para que serve essa ideia no mundo real. Que problemas vai efetivamente resolver. Que futuro vai desenhar.
A realidade é que o verdadeiro empreendedorismo não existe sem consciência histórica, sem pensamento crítico, sem compromisso com o bem comum.
Lídia Jorge falou de “loucos no poder” e do populismo que seduz pelo ruído. Ora, o empreendedorismo não pode ser cúmplice desse ruído. Tem de ser o antídoto. Tem de ser espaço de criação, de inovação e de inclusão. Porque empreender é decidir, e decidir é sempre um ato político, mesmo que o recusemos como tal.
Se queremos um país que empreende com futuro, temos de começar por reconfigurar esta narrativa. Deixar de ver o empreendedor como alguém que “fugiu do desemprego” ou que “arranjou uma forma de se safar”. E começar a vê-lo como um agente cultural, capaz de criar modelos económicos alternativos, sustentáveis, regenerativos.
E para isto, precisamos de empreendedores que verdadeiramente conhecem o mundo onde se movem. Que conseguem ler as entrelinhas da política económica. Que compreendem que liderar um negócio é inevitavelmente o influenciar de mentalidades, a circulação de valor, a construção de significado a nível coletivo. E por isso, não há neutralidade na liderança, não há neutralidade no crescimento e não há neutralidade no empreender. Há, sim, uma profunda responsabilidade com as palavras que usamos e com os modelos que escolhemos alimentar.
Portugal precisa de mais empreendedores que entendam isto.
Empreender é, ou deve ser sempre, uma escolha de sentido.
E esse sentido começa com atos de coragem.
