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Domingo, Abril 27, 2025

Nada a Perder- Por António Duarte-Fonseca

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Durante décadas, até entrado o século XXI, nos estabelecimentos de reeducação do Ministério da Justiça, misturaram-se crianças e jovens delinquentes com crianças e jovens meramente carecidos de protecção social, para cumprimento de medidas aplicadas pelos tribunais de menores.

Certo dia, um desses jovens internados por carência de protecção social regressou muito exaltado de uma licença de saída de fim de semana. Contou-me que tinha havido um roubo nas imediações do seu bairro, em Lisboa, e que a polícia tinha ido «apertá-lo» a casa dos pais, por suspeitar que estivesse implicado e o saber internado num «reformatório».
O que o magoou e revoltou foi a suspeita. Era, de facto, um rapaz cuja boa conduta e aplicação era bem conhecida há anos no internato. Não me esqueço do que então me disse: «Um dia destes vou mesmo roubar, a fama já tenho só por estar aqui; e se da fama não me livro, então venha o proveito. Não tenho nada a perder.»
As suas palavras não constituíam apenas como que uma aula prática de Criminologia, sobre os efeitos criminógenos do preconceito e da estigmatização.

Consolidaram também a minha convicção sobre os efeitos perversos de uma lei, porventura cheia de boas intenções, que sujeitava no mesmo local e ao mesmo programa reeducativo, crianças e jovens que não tinham praticado qualquer crime com outras que já o tinham feito e até reincidido.

Lembrei-me mais uma vez da indignação, da revolta e das palavras desalentadas desse rapaz, por causa das circunstâncias da morte de um cidadão na Cova da Moura, na sequência de perseguição e confronto com a polícia, bem como por causa dos sucessivos incidentes que se lhe seguiram e se foram espalhando, para além das fronteiras do bairro, a outros bairros.

A estigmatização que marca quem reside num centro educativo da Justiça ou num estabelecimento prisional também atinge quem vive nos bairros de onde provém boa parte dos internados e reclusos, mesmo sem razões factuais. Daí ao preconceito e à suspeita sistemática o passo é curto. E não se limita as agentes policiais e operadores na justiça, abrange igualmente os cidadãos, sobretudo os que não vivem em bolsas que concentram explosivamente situações de grande vulnerabilidade social.

Esse preconceito enquistado, a suspeita difusa e a estigmatização sistemática são duramente sentidos por quem os sofre anos a fio, às vezes desde que se nasce. Os mais velhos acabam por se resignar com o tempo e por se habituar a viver com isso, como se fosse mais uma doença crónica.

Os mais novos, com a sua ânsia de viver e fruir, prenhe de sonhos e ambições, são justamente sensíveis à injustiça que o preconceito, a suspeita sem fundamento, a estigmatização automática e a discriminação sempre representam. Não se pode estranhar que se indignem e se revoltem, apesar da discriminação ínsita no portuguesíssimo ditado «quem não se sente não é filho de boa gente» que considera a ofensa e a indignação apanágio exclusivo dos socialmente favorecidos.

É bizarro e preocupante que, sob a inebriante doce fama de país mais seguro, apenas se queira insistir teimosamente em reacções musculadas, em combate sem tréguas, em perseguições criminais sem quartel.

Ignorar as causas profundas dos problemas e permanecer indiferente às gritantes chamadas de atenção dos que os sofrem corresponde exactamente ao mesmo que aplicar um penso espesso e oclusivo sobre uma ferida que nem sequer se desinfectou.

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