Na meninice e primeira juventude habituei-me a ouvir pronunciar o nome de Avelino Carneiro como se fosse um elemento da família. Em minha casa sempre se falou nele como se de um tio se tratasse, dada a ligação de amizade que o unia ao meu pai.
Na década de 1940 (e princípio da de 50, tinha eu seis ou sete anos e o meu irmão César, dez ou 11) as nossas casas, na Travessa Silva Brinco (actual Rua das Flores), em S. Mamede de Infesta, Matosinhos, eram contíguas e os respectivos quintais divididos por um arame preso em estacas. Aí, eu e o meu irmão brincávamos diariamente com as suas filhas, Alcina e Serafina.
O meu pai e Avelino conheceram-se, talvez, na década de 1920. O meu pai era padeiro e, nas noites frias e chuvosas de Inverno, na entrada da padaria onde trabalhava, abrigava-se um jovem que não tinha morada certa. Os padeiros “adoptaram-no”, e não tardou que aquele tímido rapaz se fizesse profissional na arte de amassar o pão. Era mais uma arte a juntar a outras que, ao tempo, aquele jovem – que se chamava Avelino Carneiro – ainda não sabia possuir… ou, se sabia, era um conhecimento que a sua profunda timidez dissimulava muito bem.
Avelino Carneiro nasceu há 118 anos (no dia 1 de Abril de 1907) no Lugar do Telheiro, em S. Mamede de Infesta, e teve uma infância trágica. Na sua meninice, a mãe morreu de doença e, a seguir, o pai suicidou-se. Passou a viver com a irmã que, pouco tempo depois, também escolheu o suicídio para sair da vida.
Com a idade de 10 anos, Avelino Carneiro ficou entregue à sorte, sem familiares a quem pudesse recorrer, e na escola não passou da Segunda ou Terceira classe (o normal para a época). Foi aprendiz de trolha, de pedreiro e de carpinteiro, comia e dormia onde calhava, amparado pela caridade dos vizinhos. Quando foi acolhido pelos padeiros, acabou por aprender uma profissão que lhe garantiu um ordenado.

Músico
Mesmo com a Instrução Primária incompleta, e sem mestres que lhe ensinassem música, Avelino Carneiro tocava eximiamente quase todos os instrumentos de corda, e ensinou o meu pai (que tinha a mesma instrução escolar que ele), a tocar guitarra.
A sua paixão pela música era antiga. Onde houvesse actuação de conjuntos musicais, o Avelino parava a escutar junto ao palanque, ou tablado, onde os músicos actuavam. No contacto com os músicos aprendeu as notas da pauta, e aos 16 anos escreveu a sua primeira partitura, intitulada “S. João do Telheiro” (embora o santo principal da capela do Telheiro fosse, e é, o Santo António… mas festejavam-se os Santos Populares de Junho no recinto daquela capela, e na zona do Porto o S. João é o rei dos foliões), com versos de um seu amigo “o Cláudio Carvalho, um sapateiro com muita habilidade para versos”, tal como contou muitos anos depois ao jornal “O Comércio do Porto.”
Entusiasmado com a sua criação, mostrou-a ao senhor Nobre, a pessoa que explorava o café do Cinema S. Mamede que, por sua vez, a mostrou a José Coelho, o músico que, ao piano, ilustrava sonoramente as sessões de cinema mudo.
O pianista gostou tanto daquela música que passou a executá-la em todas as sessões de cinema. Era uma melodia que facilmente entrava no ouvido, e não tardou que Avelino Carneiro ouvisse trautear na rua o seu “S. João do Telheiro”, por aqueles que assistiam às sessões de cinema… mas que ele nunca ouvira por não ter dinheiro suficiente para comprar o bilhete que lhe permitia entrar no cinema e assistir às sessões!
Essa falha resolveu-a logo que conseguiu juntar a verba necessária para o ingresso, e contou a experiência ao mesmo jornal do Porto: “Eu não sabia que se tocava a minha música no cinema da minha terra. Um dia fui lá… vestindo roupa velha, para a geral… o que eu senti no meu peito! O senhor Nobre, bondoso, viu-me, chamou-me e apresentou-me ao maestro Coelho, que me felicitou e disse que ia vender a canção a uma casa de músicas do Porto, na Galeria Paris [a Biblioteca Musical, hoje transformada em Bar, mas que conserva a decoração de azulejo na fachada do prédio]. Mesquinho, não acreditando no que ouvia – podia lá ser! – nunca mais apareci ao homem”.
Mais tarde Avelino Carneiro compôs dois tangos e ofereceu-os “à filha do senhor Marques da padaria” (presumo que seria o seu patrão). “A professora de piano da menina tocou-os e ficou encantada. Mandou-me chamar, felicitou-me, e o sargento Manuel Nogueira escreveu umas letras para aquelas músicas. Logo ali se projectou uma edição com a fotografia do autor. Não voltei a aparecer! Tinha para mim, talvez pelos princípios da minha vida, mortes e desgraças, que quem nasceu para cinco nunca mais chega a dez!”.
Possuindo uma grande modéstia e maior timidez, o que é notório nestas suas palavras, Avelino Carneiro só muito mais tarde (em 1942) acreditou na sua capacidade de escrever texto e música para Teatro de Revista. Entretanto, fez música e deu ideias para o trabalho de outros, como, por exemplo, Neca Rafael, o fadista cómico de Vila Nova de Gaia, e alguns grupos de teatro amador que encenavam revistas.
O amor que sentia pela música levou-o a integrar o conjunto Novos Palhaços, de S. Mamede de Infesta. Pouco depois o grupo extinguiu-se para dar lugar ao projecto Grupo Musical Galispos de Prata que fez actuações em festas e romarias, granjeando admiradores e fama, e lançando a semente para o que haveria de se transformar numa empresa teatral.

Autor teatral
Em 1942 escreveu a sua primeira Revista de Teatro, “O Senhor de Matosinhos”, sendo autor da totalidade da peça: texto das rábulas, letra das canções e música. O elenco era formado com actores de ocasião, escolhidos entre amigos, mais as suas filhas Alcina e Serafina, ainda crianças muito pequenas. Ele próprio dirigiu os actores e encenou a peça.
Os cenários eram pintados pelo Domingos (Nocas), grande decorador dos painéis de carroceis e pistas de automóveis das romarias de todo o país. O Nocas também representou, cantou e tocou viola em algumas das suas Revistas, com estrondoso êxito. Foi o começo de uma longa lista de peças que Avelino Carneiro levou à cena em variadíssimos palcos, não só no Porto e no Norte, mas também no Parque Mayer, a catedral do teatro revisteiro de Lisboa.
A sua carreira a nível nacional foi prejudicada por duas razões principais: primeiro, por ser do Porto, num país miseravelmente macrocéfalo, que tem Lisboa como o centro rotor da vida nacional (razão tinha o jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco, quando disse: “Portugal é um país de pequenos, a começar pelos grandes”).
E em segundo lugar estava a inveja dos colegas do mesmo ofício – razão esta que está intrinsecamente ligada à primeira – sempre prontos a denegrirem o nome e as acções dos seus colegas que apenas veem como concorrentes, na expectativa de se imporem, não pela qualidade que raramente ou nunca têm, mas pela sacanice que possuem em abundância… o que sublinha e reafirma a razão de Fernando Assis Pacheco na apreciação de “Portugal e os seus grandes”.
Em conversa com as filhas de Avelino Carneiro (tida há cerca de 25 anos, para recolher elementos e escrever este texto que só foi publicado em Fevereiro de 2014 [há 11 anos] na revista Grande Porto) elas contaram-me esta história deliciosa: uma vez, estava uma companhia profissional de Lisboa a representar uma Revista no Teatro Sá da Bandeira, e Avelino Carneiro apresentava a Revista “S. João das Fontainhas” no Cine-teatro Carlos Alberto. O Sá da Bandeira tinha salas quase vazias, e o Carlos Alberto com bilheteira esgotada todos os dias. Os actores lisboetas sabiam que Avelino Carneiro era amador, e queixaram-se à autoridade competente, alegando que o profissionalismo que corporizam estava a ser prejudicado pelo amadorismo.
Na sequência da queixa, numa determinada noite, os fiscais entraram no Carlos Alberto, retiraram o original ao ponto e fecharam a respectiva caixa da frente do palco, obrigando os actores a representar sem serem pontados. Na óptica dos fiscais, só assim aquela companhia de amadores poderia comprovar o seu desempenho profissional (embora, ao tempo, os profissionais usassem ponto!).
A representação decorreu impecavelmente, sem falhas nem esquecimento do texto de qualquer actor, cuja peça os fiscais acompanhavam pelo original do ponto… e acabaram por se render à evidência… aqueles amadores demonstraram ser “muito profissionais”, de acordo com o processo usado por aqueles ficais para se medir o profissionalismo. Aconselharam Avelino Carneiro a certificar-se como produtor teatral, requerendo carteira profissional, e a retirar de cena as suas filhas por serem menores. Só assim o Avelino poderia continuar a actividade artística, agora a nível profissional.
Assim se fez… mas o que os fiscais nunca souberam, foi que aquela peça tinha data de estreia marcada. Por qualquer razão foi adiada dois meses, durante os quais se ensaiava três vezes por semana. Quando estrearam, já os actores tinham os papéis na ponta da língua, como que se aquela revista estivesse, já, no fim do seu ciclo de vida em palco!

Naquela época, as habilitações académicas superiores eram de existência inimaginável na classe proletária que constituía a maioria dos portugueses. Por isso a terceira classe da instrução primária era considerada uma “benção do saber”… e quem tivesse a quarta classe… já estava próximo do doutoramento! O meu pai tinha as mesmas habilitações escolares do Avelino. No meio social em que vivíamos, poucos iam além desse grau de ensino.
Por seu lado, o termo “amador” ainda hoje é difícil de digerir por alguns profissionais de teatro e de outras artes. Só tem repulsa pelo termo quem não sabe que “amador” designa “aquele que ama”. No caso do teatro evoca o amor que autor e actores nutrem pela arte de representar, não estando nela simplesmente para receberem algum dinheiro pelo trabalho desempenhado, pois não buscam lucro material. Neste contexto, quem minimiza o termo “amador”, provavelmente maximiza o termo “mercenário”.
Um crítico teatral lisboeta, conhecedor do percurso de Avelino Carneiro, e não alinhando na filosofia de que o amador representa um posto menor em teatro, publicou estas linhas no jornal O Século, quando de uma das representações da companhia de Avelino Carneiro em Lisboa: “Lutador indefectível, perseguido e escorraçado do meio teatral durante vários anos, mercê do ódio e despeito de vários autores – componentes de várias parcerias falhadas, que subscrevem revistas aos quatro, como os galegos para conduzirem por essas ruas os pianos de cauda a pau e corda – triunfou em toda a linha”.
Na procura que fiz em jornais, detectei 17 revistas da autoria de Avelino Carneiro, mas a lista não está completa. Relativamente a uma delas, com o título “Siga a Rusga”, representada no Teatro Constantino de Nery (Matosinhos) em Dezembro de 1948, depois de ter experimentado o êxito no Sá da Bandeira (Porto), o seu cartaz anunciava nomes de topo do teatro revisteiro portuense: Maria Aurora, Maria do Carmo, Adelaide Kopke, o consagrado compére Sidónio Teixeira e a “distinta commére com dicção impecável” Branca Araújo. Também lá estava Domingos Nocas, “a voz de ouro que o público nunca se cansa de aplaudir”.
Se, relativamente ao texto, um ou outro crítico demonstrou não ter encontrado nada de realmente inovador, considerando que o autor navegava nas mesmas águas de ano para ano, já quanto à música não cessavam de lhe tecer elogios. Era sempre enaltecida pelos críticos como constituindo a surpresa de cada espectáculo escrito e produzido por aquele autor do Porto.
Avelino Carneiro não resistiu à doença que lhe minava os pulmões e veio a falecer ainda novo, no dia 24 de Março de 1961, em vésperas de cumprir o seu 54º aniversário. Foi sepultado no cemitério de São Mamede de Infesta, e a autarquia homenageou-o dando o seu nome a um largo e a uma rua do Telheiro, o lugar onde nasceu e viveu.
Homens como Avelino Carneiro, que saem da vulgaridade, raramente são reconhecidos a nível nacional quando não fazem parte da colecção das “celebridades da capital”.
Um dos actores que Avelino escolheu para figurar nos vários elencos que formou para as suas Revistas, foi José Lopes de Almeida. De certo modo, Lopes de Almeida teria sido um continuador do trabalho de Avelino Carneiro. Possuindo os seus originais, Lopes de Almeida adaptou-os ao tempo e às circunstâncias, representando-os nas suas Revistas que todos os anos (por um período de mais de duas décadas) levava à cena no palco do Teatro Sá da Bandeira.
Fui seu actor a partir de Setembro do ano 2000, quando saí do Jornal de Notícias. Desempenhei papéis na Revista “2001 – Odisseia do Carago” (ao mesmo tempo tive aulas de formação de actor no TEP – Teatro Experimental do Porto). Sabendo que os seus textos eram adaptações da obra de Avelino, sugeri-lhe um número de Revista – a incluir numa qualquer que produzisse por aqueles tempos – onde se homenageasse a memória de Avelino Carneiro.
A ideia ficou-lhe na mente, mas jamais se concretizou. Lopes de Almeida faleceu em Maio de 2012, e a homenagem que a memória de Avelino Carneiro merecia (e merece)… nunca foi feita.

Jornalista/Cartunista