Feira de Março em Aveiro.

Por estes dias abro as portas da memória e procuro em cada canto, aqueles dias de março soalheiros e ventosos de uma infância e adolescência deixadas a marinar. Surgem quase sempre de mansinho quando me apercebo que estamos, mais uma vez, no tempo da Feira de Março.
E que tempo é este que anima a cidade de Aveiro e traz à urbe promessas de entretenimento e festa durante um mês. Tempo de hoje e de outrora.
Tempo de ventanias e frio que nem por isso, os mais afoitos se coíbem de passeios e uma visita às farturas. É tradição, assim julgamos, que os ventos e as farturas andam de mãos dadas nestes marços. É comum associarmos à Feira de Março o vento e chuva que nesta altura fazem das suas.
Vem-me à memória aquelas tardes, depois das aulas, aos magotes, lá rumávamos para mais uma voltinha, mais uma viagem e as saias plissadas da época rodopiavam e não havia mãos para as segurar. De entre a algazarra havia uma ou outra que mais preocupada com o atrevimento do vento, recorria a um casaco que atava com toda a força à cintura.
Para ser mais verdadeira, algumas vezes não saíamos pela porta da frente do Liceu Nacional de Aveiro, não senhor, saíamos pelas traseiras saltando o muro que dava para o Alboi e assim fugir dos raspanetes da dona Lurdinhas – e bem dados.
Gente desses marços, recordar-se-ão do fascínio pelo circo, chegavam à cidade dois circos que se acomodavam cada um deles em cada quinzena alternadamente, das mulheres maquilhadas e atrevidamente decotadas, lábios vermelhos, pernas mais despidas; rapazes altos e lindos que olhavam as catraias com olhos pingo de mel. Acho que todos queríamos ou invejávamos a liberdade dos que se arriscavam no trapézio. Um voo sem rede que nos suspendia o ar.
E os carrinhos de choque descontrolados embatiam uns nos outros e soltavam gritinhos de medo ou um frenesim agudo quando batiam de frente e dávamos de caras com os miúdos do outro Liceu.
Se na adolescência não precisávamos da mão dos nossos pais, na infância, era pela mão deles que aos domingos à tarde, nos movimentávamos numa única direção: a Feira de Março. Eram os dias da família, pais e filhos numa cumplicidade amorosa. Uma passagem pelo algodão doce, às vezes às pipocas, mas os nossos olhos de criança, incidiam nas tendas dos brinquedos de madeira; aí, com birras pelo meio, lá conseguíamos levar para casa, um carrinho voador, com asas de pássaro e um apito de barro ou um Galo de Barcelos para a cozinha da mãe.
Domingos de deixar a tristeza atrás da porta de casa e assoalhar os dias menos claros.
Sou do tempo do Poço da Morte e do barulho ensurdecedor da mota, do Homem Gigante e das bolas de pano atiradas a latas na esperança um prémio. Nunca trouxe nenhum.
Não exagero se por estes dias, a memória desses tempos invadir parte dos aveirenses que, como eu, viveram tardes de alegre convívio, mesmo quando o vento nos fustigava o rosto e o carrossel anunciava “mais uma volta, mais uma corrida”. Se por estes dias, a memória nos levar ao primeiro encontro, à primeira amizade, a um namoro que vingou a uma desilusão de março. A memória é uma casa habitada por feixes de luz e sombras, só a abrimos se nos permitirmos. Uma permissão consentida.
Mais um ano, mais uma feira. Por lá nos encontraremos ou num dos muitos concertos ou o mais provável, na esplanada de uma das casas de farturas a saborear, o frito polvilhado de canela e açúcar e uma taça de vinho branco. Brindaremos a esta tradição que nos acompanha e define enquanto aveirenses no mês de março.
Mais uma voltinha neste carrossel que é a vida.

Professora e Escritora