Quando em 1917, António Rodrigues Reis, fundou a sua mercearia “A Pérola do Bolhão” cumprindo o seu sonho de se transformar num comerciante de sucesso, estaria certamente longe de imaginar que mais de um século depois, a fachada da sua mercearia seria dos locais mais fotografados da Invicta e que as fotografias correriam mundo.
A cidade do Porto tem uma relação com o comércio bastante antiga e intensa. As próprias artérias da cidade foram-se edificando em torno do crescimento industrial e comercial, e, na viragem para o séc. XX, a cidade do Porto acompanhava a evolução das grandes cidades europeias e emergia cada vez mais moderna. Como refere Hélder Pacheco “o Porto assistiu à verdadeira revolução comercial que transformou ruas inteiras – Santo António, Santa Catarina, Clérigos, Cedofeita, Sá da Bandeira – em centros de encontro e, sobretudo, de descoberta da civilização (…)”(Pacheco, 2019)
Por essa altura, já a cidade do Porto era um dos principais centros comerciais e industriais de Portugal, com uma economia fortemente marcada pelo comércio, especialmente a exportação de vinhos e produtos têxteis. A cidade, com a sua localização estratégica junto ao rio Douro, atraía comerciantes de diversas partes do país e do estrangeiro, criando uma atmosfera dinâmica e cosmopolita. Ali, comerciantes de diferentes áreas reuniam-se, oferecendo os seus produtos diretamente aos consumidores e mantendo viva a tradição do comércio local. O comércio no Porto também estava muito relacionado com a inovação e o desenvolvimento da cidade, com a modernização dos transportes, como o surgimento das linhas de elétrico, que facilitavam a circulação de mercadorias e pessoas.
As ruas do Porto estavam sempre movimentadas, com mercados tradicionais como o Mercado do Bolhão sendo este, um ponto central da vida comercial.
A Rua Formosa, já existia no início do século XX, e era uma das principais artérias comerciais da cidade e um reflexo do desenvolvimento urbano e da modernização que caracterizou a cidade nessa época. Durante este período, o Porto passava por grandes transformações, especialmente com a expansão e modernização do seu centro, que também era marcado pelo aumento da atividade industrial e pelo crescimento da classe média.
A Rua Formosa, localizada entre a Baixa e o Bairro do Bonfim, era um local bastante movimentado, com uma grande variedade de lojas, cafés e outros estabelecimentos comerciais, que atraíam tanto os habitantes locais quanto os visitantes. A rua tinha uma arquitetura típica da época, com edifícios de vários andares, muitos dos quais ainda apresentam elementos de influência neoclássica e art nouveau. Além disso, a rua estava ligada a várias outras áreas comerciais e residenciais importantes, o que a tornava uma via central na vida social e económica da cidade. Era também uma rua em expansão comercial através de produtos de luxo e moda, como o vestuário e a relojoaria. E também produtos alimentares.
Os comerciantes do Porto eram, em grande parte, empreendedores independentes, com fortes laços familiares e uma grande capacidade de adaptação às mudanças económicas. Com determinação, os comerciantes investiam nos edifícios onde abriam os seus estabelecimentos, utilizavam estratégias visuais e luminosas, decoravam as montras e faziam brindes publicitários, esmeravam-se para atrair e fidelizar os seus clientes. Infelizmente, restam muito poucos desses estabelecimentos comerciais do início do século passado, e, por isso, é importante realçar e preservar o seu papel simbólico, patrimonial e identitário numa altura em que a especulação imobiliária e o crescimento turístico parecem entrar numa progressiva espiral.
A “Pérola do Bolhão” é, através da sua fachada, um símbolo patrimonial da cidade do Porto que atrai cada vez mais turistas. A mercearia abriu no rés-do-chão do prédio com o n. 279 na rua Formosa, bem perto do Mercado do Bolhão.
A bela Fachada Arte Nova foi mandada construir por António Rodrigues Reis, o fundador, para a abertura da sua mercearia, quiçá inspirado pela beleza e monumentalidade do edifício do Mercado do Bolhão, o qual tinha sido desenhado pelo arquiteto António Correia da Silva e construído três anos antes. Um olhar mais atento permite encontrar no canto inferior direito de uma das secções retangulares a inscrição original com identificação da fábrica e do ano:”Fca. DO CARVALHINHO / 1917″.
A Fábrica Cerâmica do Carvalhinho fundada em 1841, estava por essa altura ainda instalada na Capela do Senhor do Carvalhinho, na Quinta da Fraga, só depois de 1923 mudou para as novas instalações em Vila Nova de Gaia.
A Fachada mantém as cores originais e é composta por uma estrutura arquitetónica de painéis amarelos, dois painéis verticais e um horizontal composto por três frontões. Nos frontões curvilíneos azulejados encontra-se ao centro o nome do estabelecimento “A Pérola do Bolhão” e em cada um dos lados, o nome dos principais produtos aí vendidos, chá e café. O painel do lado esquerdo, por baixo da palavra “Chá”, apresenta uma figura exótica em pé, com folhas de chá pendentes nos cabelos negros e segurando na mão esquerda um ramo de flores de chá. A outra secção, apresenta outra jovem com plumas na cabeça, colar feito de bagas de café e na mão direita um ramo de bagas de café. Ambas as figuras têm mantos azuis e lenços pendentes avermelhados.
As Figuras parecem convidar-nos a entrar no estabelecimento, que mantém o interior inalterado. Viemos num bom dia e ao fundo, sentado junto à antiga máquina registadora encontramos António Reis, o filho do fundador e atual proprietário, que tem a paciência e o tempo para nos contar parte da história deste estabelecimento, a qual parece imiscuir-se na história da sua família e de si próprio.
António Reis, começa por nos falar do seu pai “ele saiu da sua terra Natal – a vila de Santa Maria da Feira rumo à cidade do Porto com o sonho do sucesso. Juntou-se a quatro sócios e, em 23 de maio de 1917, fundou esta mercearia especializada em chá, café e especiarias. Só regressava à vila da Feira em visitas, vestido elegantemente com fatos feitos à medida, chapéu e flor no bolso do casaco.” A indumentária tinha de acompanhar o sucesso. E nesses tempos, a apresentação e o modo de vestir indicava um determinado estatuto. De seguida, em jeito de brincadeira diz-nos a rir “o meu pai «foi despachando os sócios» e ficou sozinho com o negócio”. Uma forma simples de resumir a luta e o investimento no sonho, pois, à medida que os lucros iam aumentando, o pai ia comprando partes da sociedade, até ficar com a mercearia e o prédio. Entretanto, casou e aqui nasceram os quatro filhos. António fala do seu pai com muito carinho, reconhece-lhe a ambição, o trabalho e o “bom Coração”. “Entretanto, o meu pai começou a ficar velho e doente e, quando vim da tropa, fiquei aqui a trabalhar. Nunca tive férias. As minhas férias, foram os 18 meses que passei na tropa na Póvoa de Varzim.”
António Reis fala do passado com a nostalgia própria de quem dedicou uma vida ao trabalho e à mercearia. Tem 92 anos. Agora “A Pérola do Bolhão” é gerida pelo seu filho, tem mais três funcionários a ajudar. António, que nasceu e vive no andar por cima da loja, continua diariamente a descer as escadas para se sentar no seu canto, junto à máquina registadora. Já não se levanta às 6h da manhã, mas a sua presença é constante e faz as delícias dos turistas. Diz que são bons clientes. “Com o turismo tudo mudou, mudou um bocadinho a maneira de trabalhar, mudou muito a cidade. Mas, vêm aqui todos os dias, a toda a hora para fotografar. É a fachada mais fotografada. E entram aqui também para comprar. Sobretudo vinho do Porto e chás. E então as conservas têm sido um festival.”
António Reis não modificou o interior da loja, apenas substituiu as velhas prateleiras de madeira por outras mais modernas, em alumínio. Colocou balcões e vitrines de vidro, próprios, para os queijos e os enchidos. A inovação foi feita ao nível dos produtos. Soube responder às necessidades do mercado alargando a oferta. Introduziu a parte da charcutaria, dos queijos, dos vinhos, das conservas e frutos secos. Os chás e o café persistem. Outrora, tinha na montra dois moinhos de café, que diariamente moíam centenas de quilos de bagos de bom café. Ainda recorda, os tempos de infância “quando andava na escola primária, e já corria o Porto todo para entregar encomendas aos fregueses”.
Olhando a loja ao ritmo das palavras de António Reis, parece-nos que estamos numa loja de Lego com todas as prateleiras alinhadas e produtos organizados. São 40 m2 aproveitados com mestria fazendo realçar a qualidade de produtos típicos portugueses, como queijos, enchidos, conservas e doces regionais. O seu ambiente, acolhedor e autêntico, transporta os visitantes para outra época, com um atendimento caloroso e personalizado, que mantém vivas as tradições do comércio local.
A Mercearia “A Pérola do Bolhão” é um ícone do comércio tradicional do Porto, um verdadeiro tesouro localizado no coração da cidade, e preserva o charme das mercearias antigas. Além da sua oferta de produtos alimentares, “a Pérola do Bolhão” é também um ponto de encontro para os portuenses, mantendo-se fiel à sua identidade histórica e ao papel de fornecedora das famílias da cidade, sem perder a atenção ao turista curioso que procura um pedaço da cultura gastronómica portuguesa. A mercearia é um verdadeiro exemplo de resistência à modernização e à massificação do comércio, mantendo-se fiel às suas raízes e à qualidade dos produtos que oferece.
Com a sua fachada característica e o ambiente único que oferece, “A Pérola do Bolhão” é uma visita obrigatória para quem deseja conhecer o Porto mais genuíno e tradicional.
Colaboradora/Filósofa