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Sábado, Dezembro 7, 2024

A afirmação dos Direitos humanos para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres – Por Maria João Coelho

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Maria João Coelho
Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa

Nasci mulher. Um privilégio. Gosto de ser mulher. Nasci num corpo que habito com gosto e cuidado, penso de forma feminina, posiciono-me no mundo a partir da perspetiva feminina. Fui educada de forma igual aos meus irmãos do género masculino, tínhamos uma escala para as tarefas domésticas repartida por todos de igual forma. Fui estudar para fora, para o curso que escolhi e, mesmo contrariando a vontade familiar, tive o apoio de toda a família.

Esta é a minha vivência enquanto mulher, e reafirmo, é um privilégio! Mas não deveria ser. Porque é um direito universal proclamado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU,1948) logo no seu artigo 1 “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Infelizmente, faço parte de um pequeno número de mulheres a nível mundial que se podem considerar verdadeiramente livres para assumir autonomamente as suas escolhas, tomar decisões e viver com dignidade. Viver de acordo com os seus princípios, valores, ideais, crenças, convicções e opções de vida. Porém, todos conhecemos histórias de mulheres que foram alvo de discriminação e atos de violência sob as mais variadas formas. Mulheres que não tiveram direito a afirmar-se como tal. É o momento de refletirmos sobre esta problemática e de recordar essas mulheres. As Marias que não puderam estudar, as Catarinas que morreram a lutar pela liberdade, as Mirabal que foram torturadas porque tinham ideais políticos, as Rosas que acreditavam na igualdade, as Penhas que foram vítimas de violência doméstica, as Joanas que foram queimadas pelas crenças, as Paulas que sucumbiram a fazer abortos clandestinos, as Anas discriminadas só por terem uma deficiência ou as Ritas que não vestem o que querem porque os namorados não permitem…não chegariam as páginas para enumerar cada mulher, cada rosto que torna o dia de ontem, 25 de Novembro: Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, um dia importante para que continuem os esforços coletivos, visando prevenir e eliminar este tipo de violência.

Aliás, a data só faz sentido, porque continua a haver mulheres vítimas de violência e discriminação. Para que as histórias dessas mulheres vítimas de violência sejam histórias do passado, de um passado que nos deve envergonhar, mas que não queremos ver repetido, temos de assumir uma responsabilidade coletiva que só pode ter na base a educação.

A relevância da educação pode ser para este âmbito ilustrada com Kant, para quem o ser humano apenas se «pode tornar homem através da educação. Nada mais é do que aquilo em que a educação o torna». Durante quase uma década, entre os anos de 1776 e 1787, Kant no seu ciclo de conferências ministradas na Universidade de Königsberg debateu questões relacionadas com a educação. Interessa-nos particularmente este aspeto do pensamento do filósofo, uma vez que evidencia o papel fundamental da educação na formação humana.

Imbuído pelos ideais iluministas, Kant defendeu uma ação pedagógica que deveria aprimorar-se ao longo das gerações na senda da formação do pensamento autônomo. Aquilo que denominou educação prática, a parte da educação que diz respeito ao âmbito cultural e moral do homem, a fim de que este possa viver em liberdade. Para Kant, a educação moral “é a educação que tem em vista a personalidade, educação de um ser livre o qual deve bastar-se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si mesmo um valor intrínseco”. Este é um processo difícil, sabemo-lo. A normatividade e o processo de normalização bem como as relações de poder e as construções sociais é que nos colocaram perante a necessidade de evocar o dia 25 de novembro como dia da Eliminação da Violência Contra as Mulheres conscientes que a violência continua a persistir.

Como nos alertou Foucault “o poder não opera num único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida sexual, (…) a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as mulheres. Só podemos mudar a sociedade sob a condição de mudar essas relações. “(Foucault, 2006).

E as relações têm mudado. Lentamente, é certo. Graças à intervenção e pensamento de muitas mulheres. Adelaide Cabete, Ana de Castro Osório, Carolina Beatriz Ângelo, Lourdes Pintassilgo, são alguns dos exemplos de mulheres portuguesas que souberam afirmar-se e com o seu exemplo abriram portas à autonomia de outras. Mas muitas mais há e houve, sem visibilidade histórica. Anónimas na luta.

Hoje, vê-se uma potencial dissolução de papéis masculinos e femininos, e as novas gerações vão-se desenvolvendo em sociedades mais abertas a novos sistemas de comparação. As mulheres apoderam-se mais da sua identidade, como nos lembra Butler e, “embora também seja desenvolvida por comparação a outros, é mais vivida como um Eu e não simplesmente como um Outro masculino. E (…) vemos que as normas são o que governam a vida “inteligível”, de homens “reais” e mulheres “reais”. (Butler, 2004)
Todavia, existem ainda fortes influências desse pensamento tradicional, o que dificulta os processos de mudança. Muitas dessas influências encontram-se presentes nos discursos, nos hábitos quotidianos, na linguagem, nas representações mediáticas, nas práticas religiosas e nas atividades sociais.

Só a partir da segunda metade do séc. XX começaram a reconhecer-se de forma efetiva vários direitos das mulheres. E, sobretudo, também a partir dessa altura, as formas de violência exercidas contra as mulheres começaram a ser consideradas formas de violação dos direitos humanos.

E, embora tenhamos de nos acautelar quando falamos de discursos feministas, uma vez que no passado muitos se focaram unicamente no princípio da perpetuação da relação de dominação masculina. Aquilo que Bourdieu identificou como uma construção social de dominação das mulheres através de um processo de imposições simbólicas. Devemos voltar à afirmação de Simone de Beauvoir ‘Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.’ É o verbo “tornar” que importa pensar e realçar, pois, é através dele que se pode discutir a forma de combater uma certa normalização baseada nos sexos que acentua a dominação de um sobre outro. A possibilidade de construção social baseada em pessoas, independentemente do seu género, aliás, uma construção que se situe antes e para além do género, é o que possibilitará a realização de cada um de acordo com a sua própria liberdade e responsabilidade. É na tensão, no processo de transformação que radica a possibilidade de configuração de uma sociedade mais livre e autónoma. Uma sociedade com menos violência. Todos os atos de violência, são atos irracionais e próprios da animalidade, por isso, Kant foi bastante assertivo quando defendeu que só a disciplina poderá impedir que a animalidade prejudique a humanidade, quer de um ponto de vista individual, quer social. Porque nenhuma forma de violência se pode justificar seja violência física, psicológica, sexual ou social.

A Convenção de Viena (1993) ao afirmar que “os direitos humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino são parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais” (ONU, 1993) veio reforçar esta indissociável ligação e interdependência entre a violência sobre as mulheres e a violação de direitos humanos. Uma enorme conquista! A humanização da mulher, no sentido de ser tratada como pessoa, como ser humano pleno de direitos.

O Direito e as organizações internacionais, representando as mais altas instituições, têm contribuído progressivamente para as conquistas ao nível das reivindicações dos direitos humanos, constituindo-se em ferramentas e plataformas essenciais no combate à violência. Porém, compete-nos a nós, enquanto indivíduos sermos vigilantes.

Cabe-nos reivindicar o direito de cada um a viver de acordo com as suas opções e escolhas. E essa reivindicação faz-se nos espaços públicos e privados. Nos palcos do quotidiano. Nas discussões familiares, nas conversas de café, nas festas, nas empresas…e nas salas de aula. É na escola, com todas as ferramentas educativas, o maior palco de abertura a formas de pensar critico e autónomo, fazedor de cidadãos, formadora de profissionais, elevador social, onde se deve continuamente reivindicar esta luta contra a violência. Enquanto espaço privilegiado na prevenção e combate a todas as formas de violência através de uma formação cívica exemplar.

Para que com Kant sejamos consistentes e inquietos, corajosos sem medo de pensar de forma autónoma. Sapere Aude (que significa ouse saber)! Como um ideal de referência, como a expressão da liberdade, e autonomia individual. Como futuro simbólico aberto a múltiplas possibilidades, tanto para mulheres como para homens, de igual forma, com a mesma liberdade e dignidade. Sapere Aude.

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