No princípio era o mito. O mito é, pois, o despertar do “logos”, da razão. O mito é a alvorada do pensamento racional. Por isso, propõe-se um mito: o mito de Sísifo.
Sísifo caíra em desgraça, tendo sido condenado a empurrar para todo o sempre um enorme rochedo até ao alto de uma colina. Porém, ao chegar ao topo da colina, o rochedo era invariavelmente arrastado pelo seu próprio peso e voltava a rolar pela mesma encosta por onde havia subido. Por isso, a tarefa de Sísifo era sempre recomeçada.
Albert Camus vislumbra neste herói trágico o símbolo da condição humana. Paralelamente a Sísifo, assim é a jornada da generalidade dos seres humanos, recomeçada a cada novo dia e alternada entre a vigília e o sono, entre o prazer e a dor, entre a alegria e a tristeza, entre o labor e o ócio. Um ritual cíclico que indefinidamente se repete e que atravessa toda a vida, como o círculo desenhado por um compasso que gira sobre a sua ponta para voltar ao ponto de partida. Círculo que simboliza quer o ciclo da existência de todos os seres – alternada entre a vida e a morte – quer a arquitetura circular do Cosmos, composto por um Céu e por uma Terra.
Também a Terra não escapa à circularidade, descrevendo dois movimentos: um em torno do seu próprio eixo – provocando a alternância entre os dias e as noites – e outro em torno do Sol, percorrendo uma órbita elíptica e provocando a alternância entre as estações quentes e frias do ano.
E debaixo da abóbada celeste? E debaixo do Sol? Nada de novo, exceto quando a noite cai. Durante a noite, o Sol volta a mergulhar nas águas do abismo, descendo ao mundo inferior. E nesse momento, sobrevem a Lua. Encontrando-se em rotação sincronizada com a Terra, a Lua não tem luz própria. A sua luz é refletida. Assim como o Sol e a Lua, assim como o dia e a noite, também a luz e as trevas se alternam ciclicamente, ora iluminando, ora obscurecendo espírito e matéria.
Do espírito encarnado exige-se a serenidade possível e o equilíbrio desejável para fazer movimentar o corpo, ora na subida ao topo da colina, ora na descida ao ponto de partida. Movimento que um dia culminará, de um modo irreversível, numa absoluta inércia.
E diante da fatalidade da inércia e do profundo vazio deixado pelos que cumpriram o ciclo da vida, resta a memória. À semelhança de Sísifo, também eles foram heróis.