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Segunda-feira, Outubro 14, 2024

Quando a vida nos finta e a terra nos arde – Por Rosa Fonseca

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Rosa Fonseca
Rosa Fonseca
Professora e Escritora

Todos os anos somos assolados pelos incêndios que nos roubam vidas e lugares e sonhos
Ajoelha-se na terra descarnada. Pende-lhe o rosto embaciado num corpo contorcido de dor…vê a sua vida soterrada nos destroços enegrecidos e todos os sonhos se calam. Envelhecem precocemente ali na orla das chamas. De repente, entre as cinzas paridas das labaredas incandescentes, rebentam-lhe as lágrimas e do peito, o último grito. Adensam-se as sombras negras de encontro a uma cortina de uma luz que ninguém quer.
Sucumbem as paredes daquilo que já foi lar. Ardem num amontoado sobre as entranhas da terra.
Fintam-nos a vida e ceifam-nos os sonhos.
Tinha voltado há pouco mais de um ano, à aldeia que a vira ser menina e mulher.

Na cidade grande construiu com a mesma força da terra, uma parte do seu caminho. Mas o desejo de criança, ir e voltar, manteve-se com o mesmo olhar ameigado ao verde das montanhas que cercavam o casario, forte e soalheiro, a raiar memórias de estórias espalhadas pelas ruas empedradas.
Trouxera na mala outros olhares e saberes, em dias mais sóbrios alimentava-se da ruralidade ancestral que gostava de preservar. A cidade ficara para trás.
Rumara ao ventre da Terra.
Erguia com alegria o seu ninho, branco e abrigado, acolhedor, de janelas rasgadas para um horizonte verde. Alimentava a alma, do aroma a urze e erva tenra, do chilreio das aves e do ar respirável.

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Direitos Reservados

Ainda a noite dormia e já o cheiro a queimado inundava a aldeia. As sirenes irrompiam no breu e uma azáfama de vozes e gritos inundavam as estreitas ruelas da aldeia. O terror à sua volta, um mar de chamas tresloucadas.
E o que era verde e abrigo tornou-se num deserto negro, morto, um silêncio sem alma.

Esvaziaram-lhe o coração dos sonhos trazidos da cidade grande – e só tinha trinta e três anos…
Alteia o olhar, eleva as mãos ao céu – único manto e tinge-se de sombras, o seu peito. Ali, dentro da terra e da cinza estava a sua vida toda empilhada. Descaroçada.
Afaga o olhar moreno do seu menino – a sua vida, aconchega-o como se quisesse reemergir dele. Reprime os soluços que doem…
Sossega o pranto na única força que lhe restava – pedaço de si. Também a única força que a ia fazer resgatar o caminho.

Que flagelo desumano e incontornável que todos os anos assola a vida das pessoas! Que revolta sem nome! Que tragédia! Que rostos sem morada!

Reacende-se nela, a robustez da terra…estende o olhar e lentamente a memória da velha cerejeira, atravessa-a, como se dos seus escombros nascesse uma brisa que alenta.
Não volta as costas ao desafio de ver florescer novas árvores e novas paredes
E recomeçar é agora o único trilho a percorrer, erguer os braços, calar o grito, secar as lágrimas e lamber as feridas.
Porque, nos podem fintar a vida, mas nunca o alento.

Resta-nos por agora, a memória dos lugares onde o céu era mais azul e todas as aves sobrevoavam o silêncio das manhãs…
A esperança vive de muitos silêncios e muitos recomeços.

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