A rua depressa se tornou um mosaico de negócios tradicionais. Confeitarias, padarias, restaurantes, cafés, douradores, casas de confeção, ourivesarias e mercearias finas foram progressivamente instalando-se ao longo de toda a artéria.
Em tempos também era lá que se encontrava a padaria do pai de Sampaio Bruno, uma das figuras mais importantes da Filosofia Portuguesa.
Porém, é a história de uma mercearia que hoje quero partilhar. Uma mercearia que nesta quadra natalícia atrai bastantes clientes há procura de bacalhau e frutos secos – a mercearia fina “Pretinho do Japão”.
A origem do nome da mercearia é um mistério que continua por desvendar totalmente. Por um lado, poderá estar ligado à sua própria origem, uma vez que esta mercearia nasceu de uma desavença entre dois irmãos, que até então eram os proprietários de outra mercearia sita na mesma rua, um pouco mais acima, com o nome “Pérola do Japão”. Talvez o fundador se tenha lembrado de “Pretinho do Japão”, pois, sempre havia alguma semelhança para atrair os clientes. Há também quem alvitre que pode ter nascido de uma conjugação entre a cor do chá e a sua origem, o Japão. E há ainda outra possibilidade associada a uma estatueta em madeira de um pretinho que, desde a abertura da nova loja, era colocado diariamente à porta, para que os clientes facilmente percebessem que era ali a mercearia, quiçá o dono se tenha inspirado nessa estátua.
Não deixa de ser curiosa a existência de uma lenda, que refere que houve uma figura chamada Pretinho do Japão, um escravo do Capelão Baltazar Godinho de Sousa, que terá falecido no ano de 1233 e terá deixado vários poemas em forma de profecias.
Permanecerão as dúvidas sobre a origem do nome, porém, desde 1947 a mercearia “Pretinho do Japão” existe na Rua do Bonjardim.
Conservas de Matosinhos
O negócio desde o pós-guerra até aos nossos dias manteve a sua identidade, mas foi evoluindo com os tempos. Passou já por vários proprietários. Em 2014 houve uma fusão entre duas famílias e a loja sofreu obras de remodelação e ampliação. Até aí, a parte da mercearia aberta ao público era bastante exígua, correspondia unicamente à zona frontal no nível mais baixo da loja. E no cimo do lanço de escadas encontrava-se a bonita porta azul pintada com uma figura negra a dançar sobre uma chávena de café com a inscrição: O melhor café o pretinho do japão. Porta que dava acesso ao armazém. Quando se fizeram as obras a área do armazém transformou-se numa ampla área de degustação de conservas e vinhos com a sua imponente mesa de madeira. Uma mesa original, construída especificamente para a loja e toda trabalhada à mão para imitar azulejos antigos. Sob o tampo de vidro há um imponente rendilhado de flores talhadas em quadrados azuis sobre um manto branco como se fossem finas peças de porcelana. Uma mesa central pensada previamente para degustação e que, agora, faz realçar a história desta mercearia pontuada por alguns dos objetos que já foram em tempos essenciais, como as balanças, a máquina de café ou os moinhos de várias dimensões e as tulhas que ainda conservam frutos secos.
Se tivéssemos de indicar os produtos mais fortes desta mercearia e que a demarcam de outras, poderíamos afirmar que são cinco: cafés, chás e infusões, bacalhau, conservas e frutos secos. Uma aposta nos produtos nacionais. As conservas são inteiramente portuguesas e na sua maioria são de Matosinhos ou do Norte, pois, como um dos responsáveis da loja nos explicou “todas as conservas são portuguesas e com bastante qualidade como a Cântara, a Minerva, a Pinhais, a Brioza, algumas são dos Açores, mas vendemos muito pouco. As pessoas não conhecem e por isso querem as daqui de Matosinhos.”
Quando entramos na secção dos chás e infusões, abre-se uma palete de aromas com mais de 50 variedades. Como nos referiram “têm muitas infusões em folha, temos muitas em flor. Há os chás tradicionais e claro, o chá “Pretinho do Japão”. E ao lado do expositor há uma folha impressa com as propriedades de cada um”.
Dos primórdios há ainda numa parede um conjunto de senhas de racionamento destinadas a produtos alimentares específicos como o açúcar ou arroz, a lembrar épocas de dificuldades económicas e escassez de bens alimentares, como os ocorridos após a segunda Guerra mundial. Nessa altura, o bacalhau também era racionado, mas pelo Natal, pelo menos no Norte de Portugal, era o prato tradicional da consoada. O Estado Novo garantia a sua distribuição e a ditadura aproveitou para impor uma propaganda nacional em defesa do bacalhau, tornando-o progressivamente tradição em todo o país.
Na mesa de corte do bacalhau, Zé Manel, o mais antigo dos funcionários, não tem mãos a medir por esta época. Há clientes bem antigos que vêm pela qualidade do bacalhau! Todo da Islândia. Hoje foi a D. Helena que esteve a executar o corte tradicional com mestria e posteriormente o embrulhou em papel pardo, daqueles embrulhos muito delicados atados com cordel. Só os merceeiros com caráter sabem valorizar os produtos e agradar aos clientes de forma tão sublime. O Sr. Zé Manel atendia um cliente de café. Só de o observar a manusear a copa e o corredor, e com o perfume no ar, já crescia a água na boca. O café está para os portugueses como o queijo para os franceses. E aqui há café do Brasil, Angola e Honduras.
Quando Alberto Rodrigues fechou definitivamente a porta da “Mercearia do Bolhão”, aquela que até então era a mais antiga mercearia portuense – com 144 anos de existência – entregou os blends de café e das misturas aos atuais donos do Pretinho, acompanhados da representação exclusiva dos cafés Cristina e dos seus 2 moinhos de café.
Logradouro e restaurante
Como a maioria dos prédios antigos, este também possuía o seu logradouro. E se durante décadas o terreno era para serventia, com a remodelação de 2014, o terreno não ficou esquecido e depois de limpo ganhou nova vida, abriu-se ao público como esplanada. Desde 2017 é um projeto de José Carlos Tinoco que o nomeou Jardim do Japão.
Um espaço único porque em pleno coração do porto surge um pequeno jardim. Um oásis, murado, rodeado de prédios centenários. Assenta-lhe como uma luva, a descrição de Agustina Bessa-Luís sobre o Porto, a sua cidade: “(…) os pátios e os muros em que se cavam escadas, varandas com os seus restos de tapetes de quarto dependurados e o estripado dos seus interiores ao sol fresco, tem toda ela uma forma, uma alma de muralha“.
Só não é um jardim secreto, porque se abre ao público, a todos os que quiserem encontrar alguma tranquilidade e refugiarem-se um pouco do bulício da cidade.
Um jardim com três magníficas árvores, como o apresenta José Tinoco “um enorme diospireiro, uma gigantesca nespereira com aba frondosa, ambas dão frutos maravilhosos e no fundo, há uma árvore de Açaí”. Não deixa de ser interessante que neste Jardim do Japão, duas das árvores sejam originárias do Japão e o açaizeiro, sendo uma palmeira nativa da região amazônica, também é chamado Açaí-preto. “Quem quiser pode trazer um cesto ou um saco e, na época dos frutos, pode levar à vontade diospiros ou nêsperas, só terá de colher. “
O projeto não poderia estar em melhores mãos. José Carlos tem formação em arquitetura, um passado ligado a projetos de artes e com a paixão pela cozinha é o anfitrião e chef neste jardim, para quem “esta cozinha é uma cozinha pequena, não permite de facto fazer uma multiplicidade de pratos, como eu gostaria de fazer. É um espaço um bocado laboratorial. Ou seja, eu sempre adorei cozinhar. É uma das minhas paixões, portanto, faço tudo com sucessivas tentativas, tentativa e erro, tentativa e erro. Depois encontro aquilo que eu acho que se aproxima daquilo que eu gostaria de encontrar como cliente num outro lugar.” Neste momento, a carta do restaurante tem cerca de 18 ofertas de comida. São pratos inspirados em viagens.
“O caril é feito com especiarias, é cozinhado de raiz. Demora três horas. (…) Há um outro prato, as Quesadillas, em que me inspirei no México, mas a minha receita é substancialmente diferente. Eu utilizo muito leite de coco. Não utilizo produtos de origem animal, a não ser, obviamente, em termos de carne, o frango.”
José Carlos, na sua cozinha de laboratório procura elaborar comida saudável, sustentável e preferencialmente vegetariana, pois, como o próprio sublinha “Eu adoro animais. Mas, na realidade se pudesse não comia nenhum bicho. E na confeção dos alimentos tudo aquilo em que eu posso introduzir sabores, odores que não têm origem animal, mas que resultem em pleno, é isso que eu faço. E se toda a gente pensasse como eu, talvez o mundo pudesse ser um bocadinho mais livre, mais liberto de alguma poluição”. Por isso também há aqui uma preocupação ética ao nível da alimentação e em relação ao ambiente. Talvez por isso, tenha clientes bastante jovens, ainda na fase final da adolescência, universitários e turistas. Este espaço tem preços para portugueses, mas é muito cosmopolita. A beleza e a serenidade deste refúgio permitem conversas abertas, a leitura de um livro e histórias maravilhosas, como a que nos contou José Carlos: “Há pouco tempo, estava um senhor a comer numa mesa aqui no jardim debaixo do diospireiro. Nós muitas vezes alertamos os clientes e dizemos que esta mesa é um bocadinho perigosa porque pode cair algum diospiro. Ora, o senhor estava a comer uma salada de frango, sentado na mesa e dez ou quinze minutos depois, estava eu na cozinha a olhar lá para fora e, aconteceu uma coisa absolutamente extraordinária, caiu um diospiro dentro da taça dele. Ele estava a comer numa taça grande. E foi absolutamente hilariante porque ele continuou a comer, mas a partir daí começou a comer o diospiro. Ficou encantado e ainda nos disse que era uma pena não cair um segundo, porque lhe tinha sabido muito bem.”
Neste jardim do Japão, jardim tropical quase secreto, um outro mundo para além da mercearia ainda que dela também faça parte, podem acontecer coisas extraordinárias.
Colaboradora/Filósofa