A notícia foi divulgada ao princípio da manhã da última Segunda-feira, dia 21 de Abril. O Papa Francisco I falecera às 7.35h de Roma (6.35h em Portugal). Tivera alta hospitalar em 23 de Março, após um internamento de 37 dias para tratar uma pneumonia bilateral. A causa da morte foi diagnosticada como tendo sido um AVC.

RECORDANDO
Em 2013, Joseph Aloisius Ratzinger (bispo alemão), no papel de Papa Bento XVI (B16) no palco do Vaticano, resignou ao cargo, obrigando à eleição de novo chefe para ocupar o trono da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR).
B16 não era bem visto por alguns católicos situados na ala mais progressista da Igreja, que nunca deixaram de o criticar frontalmente por não esquecerem o seu passado à frente do Gabinete para a Congregação da Fé (substituto da “Santa Inquisição” de má memória).
As suas acções de militante da extrema-Direita política a que colou o seu pensamento, foram notórias nos processos que desenvolveu para destruir o movimento denominado Teologia da Libertação, iniciado na década de 1950 pelo teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, seguido pelo brasileiro Leonardo Boff, pelo salvadorenho Jon Sobrino e pelo uruguaio Juan Luis Segundo, entre outros.
A Teologia da Libertação foi um movimento religioso e social muito desejado e aplaudido pelos paupérrimos povos católicos de toda a América Latina, historicamente explorados pelos donos do dinheiro que o Vaticano sempre protegeu na sua habitual dicotomia: no altar com os pobres e à mesa com os ricos!… Por isso era notório o desprezo que muitos bispos sentiam por B16, facto que não terá sido alheio à sua resignação.
Procurado novo líder para a ICAR, a escolha recaiu sobre o bispo jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio (nascido em Buenos Aires a 17 de Dezembro de 1936), eleito papa com o cognome, ou nome profissional, de Francisco I (F1), no dia 13 de Março de 2013.
De imediato aconteceu na Igreja o que sempre acontece na Política, já que Política é, também, o que os homens da Religião fazem, e a bajulação dos líderes é atitude sem pátria, sem cor partidária e sem credo.
As muitas vozes que lisonjeavam B16, passaram a enaltecer F1. Os mesmos piedosos epítetos elogiosos que haviam feito o retrato de Ratzinger, passaram a ser dirigidos a Bergoglio, mas acrescidos de enaltecimentos e mais valias que não pertenciam a Ratzinger. Se as referências ao bispo alemão exaltavam a sua intelectualidade de gabarito, do argentino sublinhava-se a sua extrema humildade e pobreza franciscana.
Na Igreja, tal como na Política, o líder é sempre reconhecido como o supra-sumo da confraria. Enquanto não se extinguir o seu prazo de validade, os elogios ao seu pensamento e às suas acções são usados em doses generosíssimas, às mancheias, até que outro lhe suceda.
A partir daí o antecessor é esquecido, e as virtudes que lhe eram cantadas transitam para o novo chefe, com o acrescento de outros adjectivos, sempre acompanhados dos sorrisos beatos de quem tece os elogios ao novo chefe do credo.
Se Ratzinger era intelectual, característica que sublinhava a sua arguta inteligência, Bergoglio era dono de uma humildade vencedora de toda a intelectualidade, porque mais próximo do povo, mais humano, mais terra-a-terra e de mãos-dadas com os paupérrimos crentes que se alimentam da fé.
A HUMANIDADE DE FRANCISCO I
Francisco I merece a minha consideração de ateu, pela sua postura perante os pobres, os imigrantes, as mulheres, a aceitação no seio da Igreja daqueles que até aí eram escorraçados pela orientação sexual ou por serem divorciados… o que o colocava a léguas de distância da “beatice” de quem, habitualmente, desempenha a função de Papa.
Como ponto alto da sua postura em favor da decência, F1 terminou com o segredo da confissão para criminosos pedófilos, entregando à sociedade civil, para que fossem julgados, os homens da Igreja que abusaram sexualmente de crianças.
Para além disto, Bergoglio era, por essência, “um homem bom…” o que se nota no seu rosto e em todos os seus discursos. Ao mesmo tempo demonstrou ser um homem igual a qualquer outro, com as virtudes e os defeitos que todos nós temos enquanto animais iguais em todo o mundo, recusando a “capa de santo” tão comum na ornamentação da figura dos Papas, como que se um qualquer cardeal promovido a Papa para poder sentar-se no trono da ICAR, fosse produzido por um espermatozoide de qualidade extra… à semelhança do “fiambre da pá”!
O Papa F1 assumia-se como sendo igual a qualquer pedreiro analfabeto ou ministro doutorado, como se demonstra pela atitude que teve ao bater na mão de uma crente que o queria agarrar, num dos seus passeios feitos na Praça de S. Pedro.
Na verdade, o modo de actuar do Papa F1 foi diametralmente oposto ao seu antecessor e contrário a muitos interesses instalados na ICAR, o que acabou por transformar o Vaticano num ninho de víboras para o bispo argentino Mario Bergoglio.

AMBIENTE DE GUERRA NO VATICANO ?
Na verdade, instituiu-se uma guerra nos meios eclesiásticos, financeiros e políticos, contra F1… facto que sublinha as características políticas e intriguistas da Religião, e mormente da instituição apelidada “Santa Sé”. Em 2019 li que “ultra-conservadores milionários norte-americanos – apoiados pelos partidos da Direita extremada do país de Donald Trump e da Europa – ensaiam um golpe palaciano que condicione a escolha do próximo Papa” (Palavras do jornalista Miguel Marujo na edição do jornal Diário de Notícias de 5 de Outubro de 2019, coincidentes com a opinião do jornalista espanhol Daniel Verdú no jornal El País do mesmo dia).
A guerra movida contra F1 pelo sector fundamentalista da ICAR que o tratava como herege, também conta com o apoio dos “principais financiadores do Vaticano”. No mesmo texto diz-se que “serão insondáveis os caminhos das pressões junto dos senhores da Santa Sé”.
Estes “senhores” têm o objectivo de, “algures num futuro mais ou menos próximo, prepararem o terreno para se escolher um Papa que tenha uma visão do mundo que se oponha frontalmente à de um bispo de Roma como Francisco, um «esquerdista» como é apoucado, por denegrir «o deus do dinheiro», atacar um liberalismo económico desenfreado e as políticas desumanas dos Estados ocidentais para com os migrantes, apostando sempre no diálogo e nas pontes com aqueles que os ultra-conservadores querem ver expulsos da mesma mesa [como os homossexuais, as mulheres que abortam, os casais de união de facto, os divorciados e recasados, etc.]”.
Ciente desta conspiração interna que crescia contra si e que tinha o apoio de poderosos de todo o mundo, F1 procurou moldar “o grupo dos seus conselheiros com homens que respondam às suas principais preocupações sociais e religiosas”.
É por isso que no lote dos novos cardeais nomeados por F1 em 5 de Outubro de 2019, se encontra o português José Tolentino Mendonça, entre outros nomes da sua confiança. Quase 80% dos 140 cardeais eleitores escolhidos por F1 têm menos de 80 anos e vão participar no conclave que vai eleger o novo Papa. A eleição precisa de colher uma maioria de dois terços para “haver fumo branco”.
A actuação conspiradora da ala fundamentalista e de extrema-Direita da Igreja Católica, colocando-se ao lado do deus-dinheiro, do poder económico, abandonando os pobres e mal tratados, é bem a imagem milenar da ICAR tradicionalista desde os tenebrosos tempos medievais e da malvada Inquisição que se seguiu, saqueando judeus e cristãos, torturando-os e entregando-os aos carrascos no patíbulo.
Esta facção mais retrógrada da Igreja – que pretende colocá-la na Alta Idade Média – constitui um grupo de poder que se apoia no conceito tradicional de Deus (enquanto espia, polícia e juiz castigador), do qual os cidadãos de todo o mundo estão imbuídos, alimentando-o para seu próprio crescimento na intenção de se conseguir mais domínio social através da expansão do medo na mente dos povos crentes e subservientes a Deus… e aos cardeais.
Os verdadeiros interesses desse mesmo povo crente e sofredor, apoiado por F1, nada valem para alguns daqueles que agora se perfilam para se sentarem na cadeira do poder da ICAR. Para os crentes que fazem a base dos alicerces que sustentam a Santa Sé, os fundamentalistas da Igreja que sempre quiseram ver F1 morto, estão-se borrifando de alto. Sabem que não perdem as bases fundamentais para sobreviverem, porque o Povo está muito bem amestrado… e o conceito de Deus (que marca indelevelmente os espíritos crentes) é consumido como pãozinho quente e peixinho fresco da lota, desde a Alta Idade Média até hoje, não se prevendo o esgotamento do filão nas próximas gerações.
COMPROVAÇÃO DAS MALFEITORIAS DA IGREJA
Comprovando tudo isto, o jornal espanhol El Mundo, na sua edição de 20 de Novembro de 2021, publicou uma entrevista feita pela jornalista Irene Velasco ao também jornalista e historiador Vicente Lozano, que foi o enviado especial da estação de televisão TV3 a Roma e ao Vaticano durante 25 anos.
Em 1978 foi eleito Papa João Paulo I (de seu verdadeiro nome Albino Luciani, nascido em 1912) que morreu 33 dias depois, cuja morte enigmática nunca foi esclarecida. Lozano entrevistou o médico próximo do Papa, que foi o primeiro a ver o cadáver de Paulo I. Declarou que o clérigo fora envenenado para que não fossem feitas as profundas reformas que o recém-eleito Papa disse pretender fazer no “Banco Vaticano, instituição que ao longo da história provocou forte tormenta na Santa Sé, e continua a provocar”.
Lozano confessou não ser nada amante das teorias da conspiração, mas que, claramente, há uma conspiração contra Francisco. Não lhe restam “quaisquer dúvidas de que existe um complô organizado para abortar as reformas que Francisco I quer levar a cabo”, e que esse complô vai muito para além do Vaticano. É dirigido por gente como Steve Bannon, que foi assessor de Donald Trump. Bannon orienta “líderes e grupos políticos para conseguir que no mundo existam mais governos neoliberais e neofascistas que possam alterar as liberdades e a Democracia. E Francisco I é, de alguma maneira, uma pedra no sapato desse projecto”.
Explicando o porquê de F1 ser um engulho para poderes políticos e económicos escravizantes, Lozano disse que Francisco “é um homem a favor das correntes migratórias e contra os muros, muito envolvido na luta contra a mudança climática, a favor da gratuitidade das vacinas do Covid… Francisco rompe o paradigma e o esquema actual de um mundo com tendências conservadoras e, em muitos casos, neofascistas”, garantiu.
Na continuação da entrevista, Vicente Lozano afirmou que o Papa corre sérios riscos de vida, tendo havido já muitíssimas ameaças contra Francisco I, não só por parte de organizações extremistas islâmicas, mas também pela extrema-Direita norte-americana com participação europeia, incluindo Espanha.
HISTÓRIA POUCO DIGNA
As guerrilhas internas no Vaticano não configuram nenhuma novidade. São tão velhas quanto o Império de Constantino que fundou a ICAR. Na obra El Libro Prohibido del Cristianismo, de Jacopo Fo, Sérgio Tomat e Laura Malucelli (Barcelona, 2000), pode ler-se que “quando o Cristianismo se tornou religião oficial, e o cargo de bispo de Roma passou a ser um dos mais ambicionados do Império, as lutas entre as facções dos candidatos rivais atingiram níveis sanguinários. Durante as eleições episcopais do ano 366, por exemplo, os conflitos entre os seguidores de Dâmaso, de origem popular, e do seu rival Ursino, apoiado pelos aristocratas, provocaram 136 mortos num só dia. O próprio Dâmaso, depois de se tornar Papa foi chamado a responder em tribunal à acusação de homicídio, tendo sido absolvido”.
Não é só nos estabelecimentos prisionais repletos de criminosos comuns que se pode colhêr argumentos para histórias de terror, inveja, conspiração e crime. O corpo cardinalício que faz a história da “Santa Sé” também tem desses episódios tenebrosos para contar… e eles chegam-nos através de vários meios, tendo especial destaque livros escritos pelos críticos da Igreja e que, no ano de 2007 foram pródigos, dando à estampa, pelo menos, quatro livros versando Ateísmo: em Março foi lançado O Fim da Fé, de Sam Harris, pela Editora Tinta da China. Em Outubro foram editados dois livros: deus não é Grande – Como a religião envenena tudo, de Christopher Hitchens, editado pela D. Quixote; e A Desilusão de Deus, de Richard Dawkins, pela Editora Casa das Letras.
Antecedendo estes três livros, foi editado o meu, em Janeiro, pela Editorial Caminho, com o título O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um Ateu. Este livro não teve a divulgação nem o interesse da crítica que mereceram os outros três, provavelmente por mais do que uma razão… e eu encontro uma (possível) no facto de o autor ser Português e o seu nome não constar da lista dos autores habitualmente publicitados e mostrados na televisão… acrescentando-lhe (muito provavelmente, também) o tradicional disparate: “é português, não presta…” que acredito também ser usado por críticos de livros que entendem desse modo a produção nacional quando o nome do autor não se encontra entre os bem colocados no panorama editorial doméstico, nem tenha tropeçado num qualquer prémio… e quem não constar dessa lista, não existe. Se assim for (e não sei se foi nem se é…) a coisa não passará de uma tristíssima atitude de gente intelectualmente pequena e saloia… tal como disse o jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco: “Portugal é um país de pequenos, a começar pelos grandes”!
O panorama político mundial em que hoje se vive, é preocupante. Uma extrema-direita perto da actuação criminosa, apoiada por Trump e Putin (este, “não está perto da actuação criminosa”… está dentro!), quer tomar conta do mundo.
Se a Europa e a América Latina, contavam com uma “palavra mais sã” do Papa… personalidade da ICAR que detém algum poder sobre a mente dos povos ainda livres, e que no caso de F1 tinha ética e respeito pelos mais desfavorecidos… não sabemos o que pode acontecer com a eleição para Papa de um bispo que seja da mesma estirpe dos ditadores políticos que, diariamente, fazem as piores manchetes dos jornais de hoje…
De facto, com a morte de Francisco I… calou-se a última voz em favor da moral.


Jornalista/Cartunista