O francês Jean Teulé é um dos escritores a quem o inesperado e cruel linchamento, ocorrido em Hautefaye, em 16 de Agosto de 1870, em plena guerra franco-prussiana, impressionou o suficiente para lhe dedicar a escrita de um livro: Mangez-le si vous voulez (2009, Comei-o se quiserdes), cuja tradução portuguesa desconheço.
O que aconteceu nessa pequena aldeia do Périgord, num dia de feira e de grande calor, é realmente impressionante, mesmo na actualidade, apesar de a desumanidade da humanidade se ter vindo a revelar profusamente através de atrocidades indescritíveis.
Abreviando, tudo começou quando Alain de Monéys, um homem novo, proprietário abastado, muito conhecido e estimado na comunidade, por ser conselheiro municipal eleito por unanimidade e ser amigo de ajudar o próximo, teve a infeliz ideia de ir à feira de Hautefaye em má hora.
As tropas do imperador Napoleão III, que declarara guerra à Prússia, tinham acabado de sofrer pesadas e humilhantes derrotas na Lorena e o orgulho dos franceses estava profundamente ferido.
Alain de Monéys, patrioticamente, tinha aberto mão das suas concretas possibilidades físicas e económicas para se livrar da incorporação militar e iria partir para a frente de guerra daí a dias.
Em amena conversa na feira, uma sua pergunta irónica foi entendida pelos interlocutores como afirmação laudatória para a Prússia e humilhante para a França. Esse curto-circuito na comunicação actuou como rastilho imparável para uma brutal deflagração.
Surpreendido e incrédulo, Alain de Monéys deixou de ser na hora o jovem promissor, estimado e bem conhecido, para se tornar aos olhos dos circundantes, mesmo de amigos e conhecidos, e de uma multidão cega, auto-intoxicada e enlouquecida, como um ogre, um prussiano, um inimigo da França que era imperioso castigar, destruir sem piedade.
Mas o ogre era, afinal, a multidão na feira. O infeliz conselheiro municipal, apesar dos seus apelos e protestos, enquanto lhe restou voz para os fazer, foi submetido a um longo rol de suplícios que não quero aqui descrever, mas que adianto serem, em malvadez, pouco diferentes das penas em que tinham sido condenados e com que foram executados, poucos anos antes, Damiens, em França, e os Távora, em Portugal, todos eles acusados de tentativa de regicídio.
No fim de duas horas de torturas, foi decidido colectivamente queimar Monéys ainda vivo e reduzi-lo a cinzas. E é nessa altura que o escritor Jean Teulé coloca na boca de um dos populares, com fundamento histórico ou ficcionando, a seguinte advertência justificativa: «É preciso queimá-lo porque senão é a Prússia que virá deitar-nos o fogo.»
Mais de dois séculos depois, em sentido contrário ao suposto progresso civilizacional, continua a ter-se conhecimento de advertências e de justificações políticas deste tipo na tentativa de defender a legitimidade de acções ofensivas e de destruição e aniquilação por parte de estados em relação a outros estados.
E tão surpreendidos e incrédulos com o que acontece quanto Alain de Monéys, é-nos proporcionado frequentemente olhar para os resultados de acções arrasadoras desse tipo, sem nos ser proporcionado, todavia, apreender a proporcionalidade relativamente às agressões a que é suposto responderem.
Esta desmesura, ao mesmo tempo tão flagrante quanto aparente, entre reacção e agressão ofende velhos princípios, estruturais para o equilíbrio do mundo, cuja morosa determinação e consolidação criou falsamente a ideia de estar conseguida. Não está.
Verificá-lo brutalmente, tomar consciência forçada de que é preciso voltar a subir a montanha com o penedo às costas, não é só cruelmente frustrante. É assustador.
Jurista