1. Cerca de um ano e dois meses depois entramos, mais uma vez, num período de campanha eleitoral para a eleição dos deputados à Assembleia da República (a 18 de maio), no meio de uma proliferação de “crises” – económica/comercial, política, de segurança (e por cá também na área da habitação e saúde), particularmente por causa de uma guerra às portas da Europa que começou em fevereiro de 2022 e teima em não cessar. Paralelamente, inaugurou-se mais uma maratona de frente-a-frentes diários (debates televisivos) com os principais líderes partidários (os mesmos), assim como um rol de promessas, soluções, compromissos e pactos eleitorais que são exibidos com alguma “pompa e circunstância”, mas já com carecida originalidade, a que não faltam, logo de seguida e em horário nobre, diferentes e afamados comentadores com as suas díspares análises e opiniões.
Com um discurso pedagógico, simples/claro e bons dotes de “entertainer”, creio que foi Marcelo Rebelo de Sousa quem não só democratizou o acesso à opinião esclarecida com “factos políticos” (derivados da natural intriga que nela circunda) – e massificou um produto de nicho para os media –, como introduziu a novidade no comentário televisivo semanal de dar notas aos nossos protagonistas e representantes políticos. Durante anos a sua aparição dominical, primeiro na televisão privada e depois na estação pública, tornou-se na “medida-padrão” do comentário televisivo. Ainda hoje, e já com quase 10 anos no cargo de Presidente da República, nenhum novo e/ou mais experimentado analista/comentador escapa à comparação e todos os recentes canais (e ascendentes a “políticos da praça”) não ignoram a influência e eficácia do formato, embora este esteja já um pouco gasto.
Adiciono ao meu entendimento aqui expresso que um modelo de debate assente em apenas 30 minutos (pouco mais de 15 para cada candidato), não permite de todo esclarecer o eleitorado relativamente às ideias (ou ausência delas), soluções para os problemas, temas (mais ou menos controversos) e uma exposição dos projetos de/para o futuro por que cada candidato pugna. Mais: inviabiliza também uma discussão clara e proveitosa para com os telespectadores que a eles assistem e favorece o ataque ao adversário (argumentum ad hominem), assim como a prática da mentira e manipulação, que é bem fértil na boca de líderes populistas que afirmam representar a “vontade do povo”. Contudo, o pior é mesmo o que vem depois destes propagandeados debates (quase paralelos com entrevistas feitas aos candidatos): horas a fio onde diferentes painéis de comentadores observam, examinam, opinam, discutem entre si e dão notas (numa escala de 0 a 10 ou de 0 a 20) ou pontos aos participantes, tudo muito semelhante a um programa de talentos de dança ou música, e acaba-se assim por desvirtuar e ampliar aquilo que cada um dos comentadores ouviu e viu da disputa transmitida, esquecendo-se muitas vezes o conteúdo original.
Lamentavelmente, assim se “esclarece” (ou atraiçoa) o grande auditório que é simultaneamente eleitor, um público que, como diria o grande filósofo alemão do Iluminismo e um dos maiores de sempre, Immanuel Kant, se acomodou a “ser menor”. («Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que tem por mim consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., não preciso eu próprio de me esforçar. Não me é forçoso pensar.» [I. Kant, “Resposta à pergunta: O que é o Iluminismo?”, in A paz perpétua e outros Opúsculos]). Ora, aqui está o generoso serviço que os canais generalistas – e sobretudo os canais informativos disponíveis nos serviços de televisão por assinatura, mais conhecidos por “TV cabo” – proporcionam: puro entretenimento, com o influente objetivo de engrossar as audiências (uma métrica conhecida em televisão como share) – e por esta via, a grande e apetecível fonte do mercado da publicidade – e moldar o pensamento e a opinião de milhares cidadãos (senão mesmo milhões), que por esta via são cada vez mais consumidores de apreciações não independentes, de visões, perspetivas, juízos de alguém que, por pressuposto, é um ‘especialista’ numa determinada área/matéria, mas que também pode servir certos interesses particulares e político-partidários.
2. Outro sector e espaço físico onde se “dá notas” – de preferência boas notas – é na instituição Escola. Num modelo de ensino utilitarista, os Governos/governantes, os pais-helicóptero’ (que se caracteriza por um estilo de parentalidade ultraprotetor, cada vez mais dominante e que interfere ativamente nas decisões escolares [e de carreira profissional] dos filhos, os quais infelizmente mostram cada vez menos aptidão para tomar decisões autónomas e imediatas), os alunos, (explicadores), os diretores das escolas e professores gostam de notas “boas”. A avaliação do processo de ensino-aprendizagem dos alunos é, sem dúvida, um dos processos mais exigentes na missão de ensinar, pois este dever ser justo, objetivo/transparente e significativo. As notas atribuídas no final de cada ano letivo devem refletir todo o trabalho realizado, atribuindo o devido valor às diferentes atividades propostas e realizadas, assim como à motivação, autonomia demonstrada, assiduidade/pontualidade, à capacidade de reflexão/criatividade, às díspares competências exteriorizadas, ao empenho e à(s) responsabilidade(s) de cada aluno…, através de instrumentos previamente selecionados e comunicados, obviamente adaptados ao contexto-turma.
De forma sucinta, no modelo de ensino utilitário a felicidade é alcançada com o integral cumprimento do prescrito pelo Ministério da Educação (agora também Ciência e Inovação) e não interessa muito se o aluno aprendeu a pensar com a alguma profundidade sobre “as coisas” e o mundo que o circunda e com qual se relaciona, se é capaz de alimentar e/ou dar uma resposta à contínua sede de conhecimento, de beleza, moralidade… e de superação de si mesmo (Delors, Jacques, International Commission on Education for the Twenty-first Century); ou ainda, se será capaz de responder às múltiplas exigências e oportunidades que a vida profissional lhe colocará e analogamente àquelas com que a sociedade o presenteará.
No presente, o grande objetivo de todo o trabalho realizado nas escolas é o sucesso educativo dos alunos, mas este tem de ser traduzido numa nota que acredite o cumprimento de todos os documentos ministeriais (como os Programas/“Aprendizagens Essenciais” das diferentes disciplinas, o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória [PA], o Projeto Educativo da escola…) e que satisfaça (quase) todos os intervenientes nele envolvidos. Por esta via, a conquista de notas (boas) é o elemento mais importante do atual sistema educativo (a pressão vem principalmente da família, mas também existe inter-pares).
Desde o início, todo o percurso escolar do aluno é marcado, viabilizado ou limitado pelas notas obtidas e a persistência das provas finais no ensino básico e de exames finais nacionais no secundário são o testemunho disto mesmo. A avaliação (diagnóstica, formativa e sumativa…) visa nomeadamente chegar a uma classificação numérica que permite, ponderando todos os instrumentos de avaliação aplicados, “medir”, “calcular” o produto do trabalho executado e “fazer as médias”, algo em que muitos alunos (e pais) pensam logo no início do ensino secundário, pois são elas que determinam o futuro académico e profissional. Pouco ou nada mais importa!
Na escola, aprender a pensar é cada vez mais uma miragem, para não dizer criminoso e/ou metaforicamente um pecado. Pensar não é útil, produtivo, eficaz, não “dá prazer”; é uma autêntica seca…, não entusiasma (gera ansiedade), cria a dúvida/incerteza (“é preferível estar errado a pensar muito num determinado assunto/problema”, disse-me recentemente um aluno) e consome muito tempo, algo que não pode ser desperdiçado neste novo mundo amplamente mediatizado – em que fazer “scroll” nos deixa entretidos e quase preenchidos – e tecnológico.

Professor do Ensino Secundário