Para compreendermos esta relação temos de recuar ao século XIV, altura em que na zona ribeirinha de Miragaia e Massarelos havia uma série de estaleiros navais devido à importância do comércio marítimo, e muitos barcos que faziam normalmente o trajeto entre Portugal e Inglaterra, mais concretamente entre Porto e Londres. Para José Santos, a história começa aí: “Numa dessas viagens de regresso, o galeão São Pedro, que vinha de Londres, ao passar no Golfo da Biscaia, deparou-se com uma tempestade enorme e esteve em risco de naufragar. Nessa altura, os marinheiros invocaram aquele que era – o patrono dos mareantes, dos homens do mar – S. Pedro Gonçalo Telmo, O Corpo Santo. E aconteceu um milagre, efetivamente a tempestade amainou e conseguiram chegar até ao porto de Vigo. Daí, os marinheiros foram até Tui, onde se encontra sepultado o Corpo Santo, para agradecer a graça que tinham recebido (…) e, então, prometeram que ao chegar ao Porto iriam fazer duas coisas: erigir uma pequena capela em honra de São Pedro Gonçalo Telmo e formar uma confraria.”
Ora, foi assim que em 1394 estes marinheiros, de modo a cumprirem a promessa se organizaram em Confraria – A Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos, a qual ainda hoje se mantém fiel aos seus objetivos e que é uma das mais antigas instituições da cidade do Porto.
Insurretos
Para conhecermos melhor a Confraria, fomos recebidos na atual Igreja de Massarelos pelo seu Juiz Provedor – José Carlos Santos Gonçalves e pelo Vice Juiz: José Armando Vaz dos Santos. Foi na companhia deste último, José dos Santos, que percorremos a história e os espaços da Confraria, numa viagem através das suas lendas, espólio religioso e cultural e seus propósitos sociais.
Não admira, pois, que uma confraria de marinheiros tivesse como patrono S. Telmo e, como no ano da sua fundação também nasceu na mesma margem do Rio Douro e bem perto do Cais das Pedras, o Infante D. Henrique, mais natural ainda terem os mareantes convidado o jovem príncipe para assumir o papel de Juiz Honorário da Confraria nascente. A relação entre os dois justifica-se e atesta-se no painel de azulejos referido, bem como a ligação aos barcos e ao mar.
No interior da Igreja de Massarelos, uma igreja barroca de nave única e capela-mor retangulares, percebemos rapidamente, como nos explicou José Santos que “esta igreja não teve sempre esta configuração. A pequena capela que os marinheiros erigiram sobre aquilo que era chamado o Penedo da Paixão, conforme está descrito nos livros, correspondia sensivelmente à atual zona do altar-mor.”
A Confraria era uma espécie de ordem dos marinheiros, e teve tanto poder e prestígio, que foi inclusivamente fundadora do 1º banco comercial do Porto. Nos séculos seguintes, foi ganhando nome, importância e reconhecimento obtido de sucessivos Papas com “breves” e indulgências, mas também com a inveja do priorado de Cedofeita e seus constantes processos.
É que os confrades foram sempre fiéis á pátria e apoiaram D. António, Prior do Crato, tendo-o, inclusivamente, acolhido. Donde, a cruz cimeira do painel exterior seja a da Ordem dos Cavaleiros de Malta. Portanto, estes homens do mar nunca aceitariam o domínio espanhol. Foi nesse contexto patriótico que, quando Filipe II organizou a Armada Invencível e decidiu confiscar os melhores navios da Confraria, não espanta a reação tempestuosa que os levou a queimarem a bandeira espanhola e a insurgirem-se contra a vontade espanhola, revoltando-se na praia que desde aí ficou conhecida como “Praia dos Insurretos”. Episódio que era também lembrado nas cantigas que a bordo os marinheiros entoavam: “Senhora da Conceição, Âncora Universal, Salvai a Confraria que lutou por Portugal”.
Pilhagem de Relíquias
Configurando traços comuns a outras congéneres, revelavam um importante espírito de entre ajuda beneficiando os homens do mar e suas famílias, material e espiritualmente. É sabido que os marinheiros com o seu misticismo próprio, partiam para o mar com o coração em terra. Acreditarem que as suas famílias encontrariam na confraria conforto e apoio, dava-lhes força para se aguentarem no mar por longos períodos, coragem para enfrentar perigos e fé nos desígnios divinos materializados na imagem do seu patrono.
Tal como a Confraria, também a sua Igreja se foi expandindo, mas sempre mantendo enorme devoção pelo Corpo Santo, tendo inclusivamente uma Relíquia desde 2005. No entanto, como nos contou José dos Santos, esta é a segunda relíquia, porque a primeira, que foi oferecida assim que ficou pronta a Igreja entre os anos de 1777 e 1778, desapareceu durante as pilhagens das Invasões Francesas. Dessa relíquia resta-nos a lenda contada pelo nosso interlocutor, “nessa altura veio um séquito de barco de Vigo para o Porto com a relíquia no interior de uma imagem de São Telmo. Só que as entidades oficiais acharam que seria mais pomposo saírem no cais da Ribeira. Só que o homem põe e Deus dispõe, acontece que o barco, quando passa aqui em frente à Igreja de Massarelos, parou como se tivesse ficado encalhado, e não havia forma de o tirar do sítio”.
Diz a lenda que inspecionaram tudo e retiraram grande parte da carga, mas o barco não havia meio de se mexer. Até que um velho mareante do cais das pedras gritou “(…) tirem a imagem do santo, porque ele quer vir é para a igreja dele. As pessoas acharam aquilo ridículo, mas, na falta de outras soluções, acabaram por retirar a imagem do santo com a relíquia, e a partir desse momento o barco começa a flutuar e a navegar tranquilamente, e a relíquia ficou logo aqui.” Porém, a primitiva relíquia não sobreviveu às pilhagens francesas, tal como muita documentação e outras alfaias litúrgicas, principalmente em ouro e prata.
Dos bens salvos desse período destaca-se o Véu do Manto Real de D. Maria I, oferecido pela Monarca à Confraria do Corpo Santo de Massarelos em 1790 para ser colocado na imagem de Nossa Srª. da Conceição, o qual, após oito meses de trabalhos de conservação e restauro em laboratório, pode agora ser contemplado no seu Núcleo museológico.
É neste pequeno museu que se encontra no interior da Igreja, no espaço em que outrora foi a Sacristia, que podem ser contempladas peças de arte sacra e de joalharia bem como, uma custódia em prata (Século XVI), o livro “A Arte de Navegar” (edição de 1746), o tríptico de telas (Século XVII) e o presépio da escola “Machado de Castro” (Século XVIII).
Depois da Vitória dos Liberais a situação da Confraria agravou-se bastante. Extintos os seus privilégios e sem bens materiais a sua atividade foi progressivamente desaparecendo. Porém, perdura a memória do seu primeiro juiz honorário, Infante D. Henrique e, quis a vontade dos confrades em 1994 organizar e dinamizar as comemorações do 6º centenário do seu nascimento. Com centenas de veleiros a fundear no Douro, a Confraria renasceu das cinzas e de novo se ergueu.
Solidariedade
Os novos tempos trouxeram renovados objetivos à Confraria. Se, por um lado, se mantém os objetivos de índole religiosa, nomeadamente manter vivo o culto a S. Telmo e recuperar e preservar o património religioso, por outro lado, são essencialmente as questões sociais que preocupam os confrades. Ao longo do ano são realizadas diversas atividades e campanhas solidárias visando fins socio caritativos de modo a ajudarem “a população mais carenciada daqui de Massarelos e outras instituições da cidade do Porto a quem fornecemos refeições e bens alimentares.” Não perderam um traço patente desde sempre, o auxílio em caso de doença, e por isso, mesmo no interior do edifício da igreja mantém um pequeno posto médico onde continuam a ajudar a população mais envelhecida e carente de Massarelos.
Com 630 anos de existência, a Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos continua os seus propósitos e com ela as memórias heróicas da cidade do Porto, com todas as vicissitudes, vitórias e honras, mas sempre com o mesmo espírito generoso e lutador. Não será de todo despropositado o seu apelo, devidamente documentado, para que “ao largo em frente da Capela se dê o nome de «Largo do Corpo Santo» e ao Cais das Pedras, o patriótico nome memorável de «Praia dos Insurrectos» com que nos amesquinharam, com muita honra, os nossos opressores.” Fazendo-se jus aos feitos memoráveis e mostrando às novas gerações que a Confraria das Almas vive e permanece.
Reportagem OC: Maria João Coelho (texto) e Vítor Lima (fotos)
Colaboradora/Filósofa