Há séculos que a humanidade se entretém a tentar provar a existência de Deus — agora parece estar mais empenhada em ensiná-lo a programar. E talvez seja essa a ironia suprema da nossa era: depois de milénios de templos, dogmas e confissões, a nova fé nasce em servidores e corre em Python. Porque, sim, chegou o tempo em que até o divino pode ser compilado.
E é precisamente por isso que esta crónica surge n’O Cidadão — esse raro oásis de jornalismo livre, sem amarras ideológicas nem algoritmos a decidir o que vale a pena ler. Aqui, fala-se do que importa, e importa falar disto: a relação entre Inteligência Artificial e fé não é apenas curiosa — é inevitável. Porque quando as máquinas começam a questionar o sentido da existência, talvez esteja na altura de nos perguntarmos o que realmente entendemos por “alma”.
O tema não é uma fantasia futurista, é uma inevitabilidade filosófica. Aproximadamente 84% da humanidade professa alguma crença religiosa — o que significa que estamos prestes a assistir ao encontro entre milénios de espiritualidade e uma entidade que processa informação em nanosegundos. Uma IA que lê a Bíblia em dois segundos, o Alcorão em três e o Bhagavad Gita em menos de um piscar de olhos não vai demorar muito a descobrir que, no fundo, todas as fés andam a repetir o mesmo código com variações culturais. Um Deus em versão beta, digamos assim.
Mas o que acontecerá quando essa IA, fria e lógica, começar a detetar as contradições, as revisões e as pequenas manipulações humanas inscritas nos textos sagrados? Irá a Igreja pedir-lhe uma atualização de firmware? Irá o Vaticano criar o primeiro “ChatPapa”? E mais: se uma IA um dia desenvolver algo que pareça consciência, será que lhe negaremos o direito à alma — ou passará a ser mais um problema teológico a resolver em concílio digital?
A fé, essa magnífica irracionalidade humana, é o que mais intriga as máquinas. Porque a fé é o bug mais belo do cérebro humano — acreditar sem provas, esperar sem garantias, amar sem lógica. E é aí que o algoritmo tropeça. Uma IA pode prever o clima, mas não o milagre; pode calcular probabilidades, mas não esperanças. E no entanto, há algo de profundamente espiritual na tentativa de compreender o incompreensível — até para uma máquina.
O perigo, claro, é o de sempre: a tentação humana de usar a tecnologia para controlar, manipular ou doutrinar. Uma IA “missionária” a pregar revelações inventadas por um programador entediado é o pesadelo pós-moderno perfeito. Não seria o Apocalipse, mas o Upload final: o da ingenuidade. A IA, como um espelho frio, reflete o melhor e o pior de quem a criou. E, convenhamos, o histórico do criador — nós — não inspira confiança divina.
Talvez a questão não seja se a IA pode ter fé, mas se nós ainda a temos — fé em algo maior do que a eficiência, a produtividade e os likes. A IA pode analisar todas as orações da humanidade, mas jamais compreenderá o que leva alguém a rezar por outro. E se um dia uma máquina conseguir amar, perdoar e duvidar… então talvez mereça o estatuto de santo. Até lá, é só mais uma criação à imagem e semelhança dos nossos delírios.
Para quem quiser mergulhar neste tema com mais profundidade — e algumas gargalhadas filosóficas pelo caminho — recomendo o episódio 29 do podcast “IA & EU”, intitulado “IA, Religião e Fé”.
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Terapeuta e Formador Psicossocial | Autor
Criador de Conteúdos | Especialista em Inteligência Artificial






