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Quinta-feira, Novembro 13, 2025

04. Quando o corpo pede uma nova ordem

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Há dias que nos preparam para a vida. E há dias em que a vida nos prepara para tudo o resto.

Ontem foi um desses dias – o dia sete de Novembro, uma data que ficará gravada na minha memória não como um número no calendário, mas como o primeiro capítulo de uma história que nunca pensei ter de escrever.

Eram sete da manhã quando a água tocou a minha pele. Não era um banho qualquer. Era um banho dado com uma esponja do IPO do Porto, cada gesto carregado de um significado que transcende o simples ato de nos lavarmos. Havia ali uma preparação silenciosa, quase ritual, para o que estava prestes a acontecer. O corpo a ser preparado, a mente a tentar acompanhar.

Depois veio a implantação do cateter. Um procedimento que parece simples quando explicado, mas que ganha outro peso quando é no nosso próprio corpo que acontece.

A anestesia local, a agulha, a sensação estranha de algo a entrar por baixo da pele, a atravessar camadas até encontrar a veia. Aquele pequeno dispositivo que, de repente, se torna parte de nós, uma extensão necessária, uma ponte entre o que somos e o que precisamos de receber para continuar. Não há romantismo nisto – há apenas a aceitação crua de que, por vezes, precisamos de ajuda de formas que nunca imaginámos.

Cheguei às onze horas ao IPO. E esperei. Duas horas que se arrastaram entre a ansiedade e a tentativa de manter a calma. Às treze horas finalmente chamaram o meu nome. E então começou. A primeira sessão de quimioterapia. Três horas e meia. Três horas e meia em que o tempo adquire uma densidade diferente, em que cada minuto é simultaneamente longo e fugaz.

Sentado naquela cadeira, ligado àquele saco transparente que goteja a esperança misturada com o medo, percebi algo: a coragem não é a ausência de medo. A coragem é estarmos aterrorizados.

Os outros pacientes à minha volta, cada um com a sua história silenciosa, cada um com as suas batalhas invisíveis. Éramos estranhos unidos pela circunstância mais íntima – a fragilidade da nossa existência e a ferocidade da nossa vontade de permanecer.

Os Cuidados e as Privações

Porque há coisas que só aprendemos quando as vivemos. E esta é uma delas.
A equipa médica disse-me que o corpo precisa agora de uma atenção diferente. Não é apenas receber o tratamento e continuar como antes. Não. É uma reorganização completa da vida, uma coreografia nova onde cada movimento conta.

A higiene tornou-se sagrada. Lavar as mãos deixou de ser um gesto automático para se tornar um ato de sobrevivência. Antes de comer, depois de ir à sanita, ao chegar da rua, cada vez. O sistema imunitário está fragilizado, e um simples micróbio pode tornar-se um inimigo terrível. As mãos dos outros também contam: quem me visita tem de as lavar. Não é paranoia, é proteção.

A alimentação mudou. Não é apenas o que como, mas como o preparo. Frutas e vegetais crus têm de ser muito bem lavados ou, melhor ainda, evitados. Nada de queijos não pasteurizados, nada de sushi, nada de ovos mal cozinhados. A comida tem de estar bem cozinhada, quente, preparada com cuidado. Os restaurantes tornaram-se territórios de risco. A comida de rua, por mais tentadora que seja, ficou no passado, pelo menos por agora.

O mundo lá fora ficou mais distante. Multidões são perigosas. Transportes públicos cheios, centros comerciais aos fins-de-semana, até uma simples ida ao supermercado nas horas de ponta – tudo isto representa exposição desnecessária. As pessoas constipadas precisam de manter a distância. Uma gripe banal para elas pode ser uma catástrofe para mim.

Há privações mais subtis, mas igualmente duras. O álcool está proibido – o fígado já tem trabalho suficiente a processar os medicamentos. Aquele copo de vinho ao jantar, aquela cerveja com os amigos, felizmente não bebo álcool, nem fumo. O tabaco, claro, nem se discute. Até o sol precisa de ser gerido com cuidado – a pele fica mais sensível, e uma queimadura solar pode complicar tudo.

E depois há o cateter. Este companheiro silencioso que agora carrego exige os seus cuidados. Não pode molhar-se diretamente no duche, precisa de ser protegido. Qualquer sinal de vermelhidão, de dor, de alteração à volta dele e é preciso avisar imediatamente. Infeções aqui são particularmente traiçoeiras.

Os animais de estimação, por muito que os amemos, precisam de manter uma certa distância. Nada de limpar caixas de areia de gatos, nada de apanhar dejetos de cães. Os bichos podem transportar bactérias e parasitas que normalmente seriam inofensivos, mas que agora representam perigo real.

Não vos vou mentir: há medo. Muito medo. Mas há também algo que não esperava encontrar – há comunidade, há humanidade, há enfermeiros e médicos que olham para nós não como casos clínicos, mas como pessoas. Há a mão que se estende, há o sorriso que conforta, há o silêncio que compreende. E há as instruções claras, os cuidados explicados, o conhecimento que nos dá algum controlo sobre o incontrolável.

Hoje acordo diferente. Não porque o cancro me tenha mudado, mas porque escolhi não deixar que me defina. Cada precaução será tomada com consciência, não com resignação. Cada privação será temporária, não definitiva. Cada sessão será uma vitória. Cada dia será conquistado, com cuidado, com atenção, com a certeza de que estas limitações são, na verdade, o caminho para a liberdade futura.

Porque a vida, mesmo quando nos pede para vivermos de forma diferente, mesmo quando nos impõe regras que nunca imaginámos seguir, vale cada segundo desta luta cuidadosa e consciente.

VÍTOR LIMA

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