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Domingo, Fevereiro 16, 2025

São João do Porto – A festa de cariz popular e origem pagã

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Maria João Coelho
Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa

A regulamentação do tempo, nas sociedades ocidentais, estabelece ritos e formas de organização entre o trabalho e o lazer – as duas realidades da vida humana. Tendemos, cada vez mais, a valorizar o trabalho, porém, o elogio do lazer torna-se essencial, pois, é no tempo livre e prazeroso que o homem pode operar mudanças nos modos de viver individuais e coletivos e também nas suas relações sociais.

Houve um tempo imemorial em que os homens souberam acolher e viver em harmonia com o Cosmos. Não tinham pretensão de o dominar, pois, aceitavam que não podiam interferir na organização cósmica e que esta lhe era anterior e superior! Velhos sábios os nossos antecessores! E reconheciam na Natureza ciclos e ritmos universais marcantes. Desde esses tempos que o homem festeja datas significativas. Duas delas são os solstícios – o de inverno e o de Verão.

Quando Copérnico defendeu o sol como o centro do cosmos e afirmou que a terra, tal como outros planetas, girava em torno dele, não imaginava certamente o impacto da sua teoria! O Sol passava a ser o centro e não a Terra! Porém, antes dele, em outros contextos e trópicos, já vários povos tinham escolhido o Sol como central, Deus, Expoente máximo entre os elementos espirituais.

Mas para o mundo ocidental, para a ciência moderna, foram estas teorias que permitiram a Galileu Galilei e a Isaac Newton estruturar o Heliocentrismo e a Astronomia! E os solstícios são fenómenos astronómicos. Explicá-los cabalmente compete aos cientistas da área, permito-me apenas referir que este ano, o solstício de verão, no hemisfério norte aconteceu no dia 20 de junho. Foi esse o dia do ano com mais horas de sol e que marcou o início da estação mais quente. Neste dia, o Polo Norte esteve na sua inclinação máxima em direção ao sol.

Os ritos pagãos, que ligam este dia à renovação da natureza, ao sol, à fertilidade e aos ciclos das colheitas, foram mais tarde incorporados pelo cristianismo. As celebrações dos santos vieram apenas, em muitos países, dar um novo nome a festas ancestrais.
Para lá da quantificação das horas solares que são agora em maior número reduzindo as noites, a noite de S. João é a maior e mais longa noite da Invicta! A noite em que os portuenses são anfitriões orgulhosos e rapioqueiros!!! Se há festa da qual gosto é esta, a de S. João.

Esta festa diz-me muito, pois, quis o acaso ou o destino que nascesse no dia 23 de junho e, para fazer jus à data, foi vontade de meus pais chamarem-me Maria João!

Assim, tive sempre a boa sorte de festejar os aniversários de acordo com as tradições joaninas. Em criança rodeada de família, amigos e vizinhos terminávamos a festa a saltar à fogueira com o rosmaninho apanhado na véspera e a lançar balões!

Depois, chegou o tempo da idade adulta, mudei-me para o Porto e decidi seguir a tradição, um pouco mais á risca, para que a B. a minha filha percebesse a importância da cultura, o respeito pela comunidade e o prazer da liberdade e da celebração do solstício de Verão.
A festa de celebração da fertilidade, da abundância das colheitas com rituais ligados á natureza e tradições assentes em elementos simples! Os mesmos que estão ligados ao S. João do Porto. Por um lado, temos as plantas Aromáticas: erva-cidreira, alho-porro e manjericos… o lado simbólico e mágico que associa cheiros ao poder de esconjuração de males e quebrantos, do mesmo modo que apelam ao lado da sedução e da virilidade, fazem destas aromáticas presenças certas nesta noite, inundando a cidade com os seus aromas, os quais vão rivalizando com os das sardinhas assadas.

Mas, as sardinhas chegaram tarde, só depois dos anos 40 do século passado, quando na feira popular no Palácio de Cristal alguém as comprou e decidiu ir comer para o bairro das Fontaínhas. Deste episódio até à aceitação da sardinha como prato típico da noite de S. João foi um “pulinho”! Já voltamos aos aromas e cheiros, que esta festa é para ser saboreada lentamente …

E se o sol é fonte de vida, é através do fogo que o mesmo se apropria, quer na fogueira que se salta, quer na que se assam as sardinhas ou as febras! Mas também há o fogo de artificio!!! E para o ar sobem os balões coloridos cheios de desejos e sonhos, ou tão só a vontade de os conseguir lançar, fazê-los subir com mestria, bem inflamados e altivos e fitá-los com orgulho até se perderem no horizonte…Não há festa mais popular!

Esta festa tão popular no Porto tem origens remotas e desconhecidas de muitos. A primeira alusão aos festejos data já do século XIV, pela mão do famoso cronista do reino, Fernão Lopes. Em 1851, os jornais relatavam a presença de cerca de 25 mil pessoas nos festejos sanjoaninos entre os Clérigos e a Rua de Santo António e, em 1910, um concurso hípico integrado nos festejos motivou a presença do infante D. Afonso.

A pensar nesta crónica e na importância de um dos bairros mais foliões e tradicionais fui na véspera da grande noite às Fontainhas para fotografar a sua Cascata. Ora, não podia ter escolhido melhor altura, pois cruzei-me com um formando que de imediato se ofereceu para ser meu guia – o Sérgio! Lá fomos ao ritmo das suas histórias e memórias, dos tempos em que em pequeno celebrava de outra forma. Com mais amigos e vizinhos e menos turistas!
Tal como outros bairros, o das Fontainhas também se foi modificando ao sabor dos movimentos sociais e históricos da Invicta.

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Sérgio Moreira na estátua das Carquejeiras
Fotografia de Maria João Coelho

Se no final do séc. XVIII e início do XIX o seu Passeio Público era local de galanteios entre a burguesia devido à vista privilegiada sobre o rio Douro, na mesma época, já as mulheres lavavam e coravam a roupa na fonte da Alameda, ainda estavam por construir os tanques que o cinema mais tarde imortalizou. A água foi sempre um manancial por ali. Sérgio referiu que a mãe e as tias também lavavam roupa e que havia no bairro várias fontes.

Enquanto caminhávamos até à Cascata ia desfiando as suas memórias. Possivelmente de lugares e vivências comuns a tantos outros habitantes do bairro, indistintos da sua história e identidade, fazendo deles lugares de memoria como os nomeou Pierre Nora.

As Fontainhas do séc. XIX eram uma zona de indústria, com fábricas de curtumes e louças e também um matadouro! Já no início do séc. XX era igualmente ponto de passagem da Louça que saía da Fábrica da Corticeira e era carregada encosta acima até aos camiões que aguardavam no passeio das Fontainhas. E havia as carquejeiras! Hoje há a estátua a homenagear todas as mulheres que o peso da carqueja vergou, como algumas da família do Sérgio.

E olhando para a estátua arrepia imaginar o peso, sobretudo ao apercebermo-nos o quão íngreme e longa é a calçada das carquejeiras. Só a valentia e a necessidade poderiam fazer aquelas mulheres subir a encosta com o peso do seu mundo às costas!

Desde a edificação da fábrica do Carvalhinho e com a procura crescente de habitações por parte das gentes que chegaram dos meios rurais em busca de trabalho, começaram a surgir as ilhas: Ilha Vila Maior, a Ilha do Cantarino, a ilha 50, a Ilha Olímpia, a Ilha Maria Vitorino! O Sérgio nasceu e cresceu em S. Vítor. Começou a mostrar-me os locais e a falar das cheias de 2017, da desgraça e das casas sociais, das recuperações para alojamento local e dos turistas que chegam nos “tuk tuk” como aquele que se abeirou de nós! E eis-nos frente à fonte! Frente à Cascata das Fontainhas.

Quis a criatividade de um desconhecido morador, mas situado em 1869, erigir em tamanho real a mais icónica cascata – S. João Batista e Jesus Cristo, numa recriação do batismo. Estava entretecida a teia entre profano e sagrado e transformado o bairro das Fontaínhas em epicentro das festas de S. João.

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Cascata das Fontaínhas
Fotografia de Maria João Coelho

Como diz o meu guia, ali acorre toda a gente, pois é o bairro mais típico e aquela é que é a primeira Cascata. Sem dúvida!

Esta cascata, hoje propriedade do Colégio dos Órfãos, é por altura da festa colocada na fonte e, mesmo rodeada do bulício que os divertimentos e carrosséis acarretam, transforma-se em local sagrado onde os mais crentes continuam a depositar orações e velas antes do bailarico! E se recuarmos ao início do séc. XX, também aqui percebemos o motivo das rusgas. De todos os bairros, saía gente, que de forma espontânea entre cantares e de mãos dadas se dirigiam às Fontainhas. Uns, saíam de casa depois da meia-noite, já com a cevada bebida e comidas as torradas, outros aproveitavam a venda do café, aguardente e arroz-doce junto à Cascata para retemperarem as forças, pois, a noite estava prestes a começar.

As cascatas são símbolo de renovação e de propostas de mundos de mascates a recriar as vivências de outrora. A necessidade sempre fez o engenho e, portanto, se já havia os presépios do solstício de inverno ou do Natal, por que não utilizar o mesmo enredo substituindo as figuras da sagrada família pelo S. João?! Nada melhor para ligar os dois acontecimentos!

Eu também adotei esta tradição por ser uma maravilhosa forma de contar histórias e todos os anos fazemos a cascata da B. sempre com novas figuras, perdão, com novos mascates comprados na festa do Senhor. de Matosinhos.

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Cascata da B – S. João 2024
Fotografia de Maria João Coelho

Este ano não foi diferente! É sempre uma forma criativa de homenagear o Santo e as tradições do Porto. Por isso construímos no quintal uma aldeia típica com as suas gentes. Em volta do lago e da fonte temos a mulher do cântaro e a lavadeira, junto a um curso de água artificial que imaginamos ser o rio andam as peixeiras e os pescadores e até um barco rabelo carregado de barris de vinho do Porto, também temos o homem das vindimas. Perto dos moinhos e do moleiro temos vários pastores com seus rebanhos, à festa não falta a banda atrás do padre em jeito de procissão. Há também o ferreiro, a ceifeira, a matança do porco, os fornos do pão a lenha e as mulheres com as galinhas, os gansos e outros animais. Há também o menino do balão e o homem dos foguetes, e assim, se vai desenvolvendo a nossa cascata até ao altar do S. João que mesmo austero abençoa a festa.

Não deixaremos que se acabe esta tradição da cascata que se mantém há mais de dois séculos. E gostamos de ver outras cascatas, como as do concurso e dos bairros populares, sobretudo não deixamos de espreitar a cascata do Bonfim e este ano a comunitária do Bolhão.

A nossa noite este ano começou bem cedo ainda com o sol alto em S. Bento. A rua das Flores parecia adormecida, mas no largo de S. Domingos já cheirava a festa. Nos jardins do Palácio da bolsa já havia quem guardasse lugar para o fogo que só chegaria horas mais tarde…E como nesta festa forte de cariz popular tudo nasce espontaneamente passámos pelo primeiro túnel de martelinhos! Uma experiência sempre engraçada e que requer alguma habilidade e espírito colaborativo para se sair de forma airosa! Nestes amontoados espontâneos mais vale entrar na brincadeira e aproveitarmos o nosso martelinho para defender a cabeça… é que de facto ninguém escapa.

Já às portas da Ribeira um pé de dança ao som de quizombas e sambas entre turistas e forasteiros. “Biba o conbíbio”, que é disso que se trata nesta festa portuense.
A emblemática Ribeira já bem composta recebe-nos cheia de luz e ruidosos apitos dos barcos que enchem o rio. Aqui a festa é farta e sobejamente linda. Cada vez mais plurilingue e multiétnica!

Apetece ficar, apetece demorar o olhar pelo casario galardoado pela Unesco, apetece apregoar ” o Porto é liiiiiindooooooo”….

Mas não tarda não se romperá por aqui, faltam poucas horas para o fogo-de-artifício! Agora não vai parar de chegar gente. Todas as ruas são rios de multidão que aqui virão desaguar! A ponte Luís I não tardará a fechar, os que pretendem chegar ao cais de Gaia terão de se apressar…. Está a terminar o meu dia, mais um ano de vida! Urra, urra… Mas, a festa tem aqui o seu momento alto e só agora começa a aquecer.

É o Porto rendido ao seu adorado S. João, que não é patrono da cidade (a “Patrona” é a Santa de Vandoma), mas é festejado com direito a Feriado Municipal. Desde o início do século XX que o dia 24 de junho passou a ser feriado municipal na Invicta, proporcionando um merecido dia de descanso após a noite de folia. E tudo graças a um decreto republicano e a um referendo aos portuenses, promovido pelo Jornal de Notícias.

Agora os olhos elevam-se e o céu ilumina-se inteiramente, jorram formas e figuras a serpentear coloridamente a noite. No fim do fogo, os aplausos e os apitos no rio. A cidade vibrante, a festejar a sua noite de folia…por que a vida tem de se celebrar! Bibó Porto!!! Bibó São João!

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