A propósito da recordação que aqui divulguei há dias, sobre o Domingo de Páscoa de 1967 no Úcua (norte de Angola) e da captura, no mato, do angolano Pedro Bravo, a minha memória colocou em primeiro plano outras vivências daquela época que, mesmo tendo passado já 50 anos, estão bem vivas.
São duas as recordações que vou contar. Cá vai a primeira:
O responsável pela SEC. OP. INFO/AP (Secção de Operações, Informações e Acção Psicológica), era o capitão Saldanha (descendente do Duque de Saldanha), que tardiamente chegou ao Batalhão em rendição individual. Era um homem muito curioso. De educação esmerada, tinha o rosto constantemente iluminado por um sorriso sedutor, merecendo, só por isso, o respeito e a admiração de todos os soldados.
Filho e neto de militares, já nasceu militar… e formou-se no Colégio Militar. Fisicamente bem constituído, tinha olhos de um azul claríssimo, e o cabelo aloirado sempre cortado muito curto, ao estilo das tropas alemãs.
Havia um mal que o perseguia mas que ele não queria aceitar. Era surdo. Muito surdo… como um tamanco!… E afirmo que não queria aceitar a sua surdez porque não usava prótese auditiva, e bem precisava dela… logo, estaria convencido de que ouvia perfeitamente bem.
Um dia recebemos — de uma companhia pertencente a um outro batalhão (a CART 1434), aquartelada na outra margem do rio que dividia aquela zona em duas partes — a informação de que iam proceder ao rebentamento de granadas antigas. Era um lote delas entre as quais se detectaram algumas que não explodiam quando se lhe retirava a cavilha para fazer funcionar a espoleta. Não se podia correr o risco de usar material de guerra que, no momento crítico, não funcionasse e colocasse em risco a vida dos soldados que o usassem.
Durante algumas horas os rebentamentos ouviram-se em todo o aquartelamento. No seu gabinete, o capitão Saldanha trabalhava incessantemente na escrita da História do Batalhão, cujo relatório das actividades tinha de enviar para o Quartel General todos os meses, e fazia-o com tanto empenho que gastava 10 ou mais horas do dia sentado à secretária a produzir manuscritos que o escriturário Hamilton estava obrigado a bater à máquina no mesmo momento.
Os rebentamentos ecoavam, o Hamilton e eu pestanejávamos com tal estrondo, e o capitão, imperturbável, de esferográfica em punho, produzia páginas atrás de páginas, com a sua letra garrafal e bem desenhada.
De repente houve um rebentamento mais forte. O capitão levantou a cabeça, olhou para o Hamilton que estava concentrado no teclado, e ordenou:
— Ó Hamilton, apanha-me esse lápis que caiu, se fazes o favor.
A segunda recordação de teor semelhante, tem a ver com um outro camarada, o cabo-quarteleiro, que imaginava ter uma visão perfeita… mas o moço não enxergava nada!… Ele lia as cartas da família com o papel encostado ao nariz, e escrevia do mesmo modo, vergado sobre a mesa e roçando na cara a mão com que escrevia.
Um dia perguntei-lhe se via bem. Admirou-se com a pergunta. Para ele era claro que via bem, porquê?
— Porque vês muito mal — respondi-lhe.
Ele pensou que eu estava a brincar. Então fiz uma experiência. De onde estávamos tínhamos à nossa frente um imbondeiro, depois uma zona de capim, a seguir uma picada, uma plantação de abacaxi em declive ascendente, e no cimo do outeiro havia uma casa da roça Acácio Cunha, que tinha uma pessoa à janela. Perguntei-lhe:
— Vês aquela pessoa à janela?
— Qual janela?
— Naquela casa.
— Casa?!
— Sim, no cimo do morro.
— Qual morro?
— Ao fundo do campo de abacaxis.
— Campo de abacaxis?!
— Sim. Para lá da picada.
— Que picada?!
— Depois do capim.
— Capim?!
— A seguir ao imbondeiro.
— Ah! Sim, o imbondeiro está aqui à frente.
Descrevi a paisagem que ele não via e levei-o a outro ponto do aquartelamento com melhores vistas. Disse-lhe o que dali se observava e de cuja existência ele nem suspeitava. O moço só enxergava o que lhe estivesse perto do nariz e tivesse a dimensão de um imbondeiro!
Não via nada mais para além disso.
Só então se preocupou com a sua falta de visão e foi ao médico que lhe fez os exames necessários. Uns tempos depois recebeu um par de óculos. Foi ter comigo para me dar a novidade. Chorou de emoção quando me disse que até àquele momento nunca tinha visto o mundo. E só passou a vê-lo porque eu lhe disse que o mundo tinha outra dimensão para além daquela que ele podia testemunhar.
As recordações de uma guerra também têm episódios assim.
E ainda se lhe pode acrescentar a estupidez e o escândalo do regime político que mobiliza um rapaz quase cego para participar numa guerra!…
Havia outro camarada que era manco. Aos quatro anos de idade foi atropelado por um carro de bois que lhe partiu uma perna. A fractura foi curada sem cuidados médicos, e o rapaz ficou com a perna torta, obrigando-o a mancar por toda a vida. Quando foi à inspecção militar convenceu-se de que iria ficar livre e chamou a atenção para o seu defeito físico. Os recrutadores do regime responderam que se não lhe faltava o dedo indicador, podia disparar uma arma… coisa que nunca se faz com as pernas! Por isso foi apurado para todo o serviço militar, e enviado para uma guerra.
E há mentecaptos que defendem um regime assim!…
Jornalista/Cartunista