A mão do artista e a memória da história
Num fim de tarde soalheiro, o sexto piso do El Corte Inglés de Vila Nova de Gaia encheu-se de vozes baixas, olhares expectantes e cadernos abertos. A sessão, promovida pelo Âmbito Cultural, prometia uma viagem pela arte contemporânea com paragens em tempos passados, conduzida por uma das vozes mais respeitadas do meio artístico português: Emília Ferreira.

Historiadora da arte, escritora, diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea (durante 8 anos, até fevereiro de 2025) e com um vasto curriculum na cultura, Emília Ferreira entrou na sala com o à-vontade de quem conhece bem o seu público e o terreno que pisa. O tema era desafiante e intrigante: “Que mão é esta?”, uma reflexão em torno da autoria, da técnica e da leitura da obra de arte.
Desde o primeiro momento, foi clara na sua abordagem. “A arte contemporânea não nasce do nada. Há sempre uma genealogia nas artes. Quem assume que vai ser inovador a partir do nada está a cair numa falácia.”
Com um humor que arrancava sorrisos frequentes na sala, recordou que “reinventar a roda” é, muitas vezes, uma perda de tempo. “Não vale a pena reinventar a roda quando já há pneus sofisticados, com jantes de última geração.”
Falou da importância da história, do olhar para trás como ferramenta de construção do novo. Trouxe à conversa o designer italiano Bruno Munari, que antes de desenhar uma cafeteira, estudava como ela fora feita ao longo da história. “Partia desse conhecimento para tentar inovar na forma e no material, servindo sempre uma função.”

A arte de ver exige treino
Um dos momentos mais cativantes foi a reflexão sobre a forma como vemos — ou não vemos — a arte. “Todos nós aprendemos a ler e a escrever muito jovens, mas ninguém nos ensina a ver. É uma aprendizagem constante.”
Falou da ilusão da facilidade visual. “Pensamos que olhamos e vemos com facilidade, mas o olhar é uma construção. Os nossos olhos fazem inúmeros movimentos para captar um rosto, um objeto, e tudo é depois sintetizado no cérebro.”
Partilhou um desafio pessoal: terá de falar, em breve, sobre uma obra de Jorge Barradas no Museu do Santuário de Fátima. “Imaginem a responsabilidade. Eu não tenho cultura iconográfica. Vou ter de me munir de muitos instrumentos de leitura para abordar aquela obra.”
Com esta confissão, humanizou o ato de ver e interpretou-o como um processo contínuo, mesmo para especialistas. “A minha formação foi em arte contemporânea porque achava ingenuamente que seria mais fácil. Não era. Eram apenas outras dificuldades.”
Entre a figuração e a abstração
A certa altura, projetou duas imagens lado a lado: uma obra figurativa e uma abstrata. Perguntou qual das duas era mais fácil de ler. A maioria apontou para a figuração. Concordou com a audiência. “Está na nossa cabeça há muito tempo. Eu própria conheço esta história. Fui batizada há 62 anos, e embora não tenha fé, sei que este é Cristo, aqueles são os ladrões, e esta é a Virgem que desmaia.”

Por oposição, a obra abstrata permitia múltiplas leituras. Referiu o caso de uma peça de Jorge Martins que selecionou para uma exposição por lhe parecer uma paisagem. “Um senhor disse-me que nunca tinha pensado nisso. E eu respondi: talvez o Jorge Martins também não. Mas eu olhei e vi paisagem.”
Insistiu na legitimidade da leitura pessoal. “A nossa liberdade como leitores não é posta em causa pela leitura do autor. Podemos ver o que quisermos, desde que o vejamos com atenção.”
Quando a arte encontra a ciência
Com entusiasmo, recuou ao século XIX para mostrar como as grandes inovações desse tempo — comboio, telefone, cinema — continuam a moldar o presente. “Ainda gosto de ir de comboio. E é uma invenção do século XIX.”
Lembrou que os artistas sempre estiveram atentos à ciência e à tecnologia. “A câmara escura foi observada por Aristóteles e depois desenvolvida por Leonardo da Vinci. E no Renascimento, artistas e cientistas trabalhavam em proximidade.”
Fez um parêntesis para sublinhar o papel dos museus: “Os museus foram as grandes escolas alternativas. Permitiam aos artistas ‘escolher’ os mestres com quem queriam trabalhar, para além da academia.”

Do traço ao pensamento: o valor do desenho
Uma parte significativa da conferência foi dedicada ao desenho. “O desenho é uma coisa mental”, citou Leonardo. “E a mão tem de se tornar inteligente para expressar aquilo que pensamos.”
Partilhou uma história curiosa entre dois arquitetos: um dizia desenhar sempre à mão, o outro preferia o computador. Comparou com os escritores: “Uns escrevem à mão, outros à máquina. José Cardoso Pires dizia que, quando apareceram os processadores de texto, percebeu que finalmente tinha a máquina de que precisava. Uma máquina de apagar.”
Risos generalizados encheram a sala. “A minha caligrafia está horrível desde que comecei a escrever no computador”, confessou. “Mas os artistas visuais continuam a trabalhar com a mão, felizmente.”
Perspectiva, textura, composição: como ler uma imagem
Com várias imagens “projetadas” na “tela” da sala, foi demonstrando como se pode olhar para uma obra de arte através de diferentes aspetos: tema, forma, espaço, cor, textura, composição. “A cor é sempre luz”, afirmou. “E no caso da composição, podemos avaliar as linhas, o ritmo, a simetria.”
Mostrou exemplos da perspectiva linear de Rafael, do espaço ilimitado de Nadir Afonso, da distorção espacial de Vieira da Silva. “A biblioteca da Vieira parece uma cidade que poderíamos visitar numa nave espacial.”

Cor, drama e simbologia
Comentou a obra “Só Deus” de Francisco Augusto Metrass com minúcia. “A mão daquela mulher não tem tensão nenhuma. Está ali como se estivesse num estúdio. O drama está na natureza, mas não nas figuras. A cor é usada como expressão dramática.”

Apontou também para o trabalho com letras e símbolos de António Sena. “Ele riscava camadas de tinta fresca como quem escreve na areia. É pintura sedimentada como memória.”

Referiu ainda o uso da cor e do tom em obras abstratas, e os jogos de leitura que esses elementos proporcionam. “Temos de perguntar: o que é que isto me invoca? O que é que eu devolvo à obra?”
A urgência de ver com mais tempo
Fechou a sessão com um convite à demora. “O cinema leva-nos pela mão, conta-nos a história. As imagens estáticas não. Estão ali à espera que nós lhes demos tempo.”
A sua última frase ficou a ecoar na sala, como uma pergunta lançada ao futuro. “Que mão é esta que hoje nos mostra o mundo?”
OC/RPC

Editor Adjunto