14.2 C
Porto
19.4 C
Lisboa
19.9 C
Faro
Sábado, Novembro 1, 2025

Pais e Filhos: Fios de água. O mesmo rio

Mais artigos

Direitos Reservados

Da recente tragédia ocorrida na Vagueira, uma das coisas que mais me assustou foi a rapidez com que passamos de pessoas, com nome, família e amigos, a números, dados e estatísticas.

Das notícias aterradoras começam agora a surgir estudos: tantos por cento de pais agredidos pelos filhos; tantas horas que as crianças passam na escola e em atividades; o pouco tempo que os pais lhes dedicam… Depois, outros apontam a falta de literacia emocional dos jovens, o tempo “perdido” nas redes sociais e nos jogos de computador… De repente, parece que estamos todos numa arena, numa luta de pais contra filhos (ou vice-versa). Olha-se para o fio de água e esquece-se o rio que o conduz.

Das experiências mais assustadoras da minha vida, a parentalidade é, sem dúvida, a mais intensa. E também a mais espetacularmente maravilhosa.

Todos os dias somos arrastados por múltiplos universos que exigem nossa presença total. No trabalho, temos que ser focados, produtivos, vestir a camisola da empresa como se não tivéssemos filhos. Chegados a casa, pelas 19h00, é hora de lhes dedicar tempo. Esquecer o cansaço, a exaustão da corrida ao supermercado, os emails da escola, os horários, as atividades… Ouvir, brincar, jantar à hora certa, dar banho, preparar roupas e lanches para o dia seguinte. Tudo antes das 21h00, hora que, segundo os especialistas, as crianças devem estar na cama.

Miúdos deitados, e ainda há os afazeres domésticos e outros assuntos a tratar: contas para organizar e pagar, lista de compras, roupa a lavar… Temos que ser pais como se não tivéssemos outra vida. Mas só que temos.
É cansativo, exaustivo, solitário… e, desta forma, impossível! E quando procuramos ajuda, ela vem quase sempre como algo que ainda falta fazer, como se tudo o que já conseguimos fosse insuficiente. O dia não dá para tudo: acordar mais cedo? Está cansada, priorize o descanso. Sente-se sobrecarregada? Delegue. Algo corre mal? Assuma o controlo. Vivemos num ‘’loop’’ doentio, correndo para chegar a todo lado e frustrando-nos por nunca sair do lugar.

Vivemos numa sociedade que exige que trabalhemos das 9h às 18h e, ao mesmo tempo, que tenhamos filhos. Depois, aponta-nos o dedo pelo número de horas que passam na escola ou nas atividades extracurriculares — como se fosse uma escolha nossa. E, como sempre, essa cobrança nunca vem acompanhada de soluções, deixando-nos a navegar numa correnteza de culpa e impossibilidades.

E depois há o outro lado: as crianças. De repente, parece que a infância é medida em números e horários, esquecendo que por trás de cada dado há uma criança com medos, inseguranças e, espero eu, muitos sonhos.

Ser criança hoje é também navegar entre múltiplos universos: aprender, obedecer, competir, socializar, corresponder às expectativas dos pais e da escola. Ter que estar presente, ativo, feliz e “bem-comportado”, mesmo quando estão cansados ou confusos. Enfrentar a pressão de ter sucesso, de se enquadrar, de entender emoções complexas que muitas vezes ainda não conseguem nomear ou compreender.

Também elas são puxadas para mundos que exigem dedicação total, sem pausas, sem descanso, sem direito a falhar. Brincar deveria ser o coração da infância, mas muitas vezes é mais um compromisso, cronometrado entre atividades e deveres.

Não tenho uma fórmula para lidar com a complexidade de um ser humano em crescimento. Nem para gerir todos estes universos todos os dias. Aceitando que este possa até ser o caminho, sinto que o problema está na forma como estamos a caminhar.
Olhando para os meus filhos sou obrigada a ver que a infância não é só diversão ou inocência: é enfrentar desafios, aprender a lidar com emoções, limites e frustrações. É navegar num rio que é maior do que eles, tentando não se perder na correnteza.

E ser pai ou mãe, nos dias que correm, é viver perdido nessa correnteza.
Não estamos contra as nossas crianças. E eu não acredito que elas estejam contra os seus pais. No fundo, estamos todos a tentar ser vistos.
Somos todos um fio de água, dentro do mesmo rio.

- Publicidade -spot_img
- Publicidade -spot_img

Artigos mais recentes

- Publicidade -spot_img