Situado no centro histórico da cidade do Porto, o Orfeão do Porto é uma das instituições culturais mais emblemáticas da cidade, com uma história que remonta ao início do século XX. A história do Orfeão do Porto está intimamente ligada ao desenvolvimento cultural da cidade.
Fundado a 3 de fevereiro de 1910, ano da implantação da República Portuguesa, o Orfeão teve um papel importante no panorama musical e cultural do Porto, especialmente no início do século XX. Uma história ininterrupta desde há 115 anos que merece ser conhecida e narrada. Com esse objetivo fomos recebidos na sua sede, pelo seu presidente Plácido Martins que nos referiu como tudo começou:
“Estávamos em fevereiro de 1910. Ainda não havia a República. Nessa altura havia uma grande influência cá no país, da música europeia, sobretudo da música coral que era muito forte no centro da Europa sobretudo em França, na Alemanha, na Áustria. Todos estes países tinham já vários conjuntos corais. Em França, por exemplo, havia muitos corais já de operários, empregados…Porque a República tinha já entrado e tinha construído já uma sociedade bem diferente. Essa influência começa a chegar a Portugal. E são constituídos Orfeões. “
Inicialmente, os ensaios eram realizados num espaço improvisado, situado junto à sede dos Bombeiros Voluntários do Porto, na Rua de Rodrigues Sampaio. Esse espaço ficava num pátio interior de um quarteirão, que foi gentilmente cedido aos membros do Orfeão, permitindo que a sua atividade se mantivesse, embora de forma provisória. Somente em 1926 é que o Orfeão se conseguiu estabelecer num edifício na Praça da Batalha, em pleno coração da cidade. Esse edifício foi significativo para a instituição, pois deu maior visibilidade e estabilidade, além de estar localizado numa das praças mais icónicas do Porto.
Curiosamente, esse edifício estava exatamente no local onde o Orfeão permanece até os dias de hoje. Nos anos 60, o edifício que abrigava o Orfeão foi demolido para permitir a ampliação do edifício vizinho, que dava origem ao Hotel Império, atualmente conhecido como Hotel Quality Inn Porto. No entanto, apesar da mudança do espaço físico, o Orfeão do Porto manteve a sua sede no mesmo local, adaptando-se ao novo edifício e continuando a sua atividade cultural com destaque. Um edifício em Salmão vivo mesmo em frente ao recentemente recuperado Teatro da Batalha. É no 1º andar que continuam sediados, porém, uma sede arrendada que não lhes pertence, e que constitui um grave problema que poderá num futuro próximo colocar em risco a continuidade desta instituição, que desde 1989 foi reconhecida como Entidade de Utilidade Pública.
O Orfeão do Porto não é apenas um grupo coral ou uma escola de música, mas uma verdadeira instituição que tem representado o espírito de perseverança e de preservação das tradições culturais da cidade do Porto ao longo de mais de um século. Plácido Martins, reforça a importância deste espírito desde a sua origem: “Foi o maestro Raul Casimiro e uns amigos que fundaram o Orfeão do Porto, tudo gente ligada à música e ao canto coral, que gostavam de cantar, e que, no princípio do século XX, quando em Portugal, nessa altura, essa atividade era residual, quiseram fazer parte desse movimento muito divulgado por toda a Europa. Por força desse movimento, decidiram formar o Orfeão. Orfeão que é o mais antigo a nível nacional, pelo menos em termos de atividade ininterrupta. Há um outro coral mais antigo, o da Faculdade de Letras de Coimbra, mas que teve, ao longo da sua existência, vários interregnos.”
O orfeonismo ou canto orfeónico disseminou-se em Portugal e, desde o seu início, os orfeões constituíram-se ligando-se à imprensa local. A evidenciar esta ligação encontrámos no Jornal “O Porto” de 19-2-1910 a seguinte notícia: “Orpheon do Porto – Um grupo de rapazes da nossa elite, fervorosos apaixonados pela boa música, acabam de fundar n’esta cidade um orpheon com este nome. A direcção ficou constituída como segue: presidente: Augusto Veras; tesoureiro, João de Mesquita Pimentel; 1º secretário, Euclides Bragança; e 2º Secretário, Jayme Cibrão. É regente o sr. Raul Casimiro um novo de incontestável valor que nos promete para breve um espectáculo de beneficiencia.”

O “canto orfeónico” era associado a uma forma elevada de música e comportamento, sendo um espaço de valorização da “decência”, do caráter e da moralidade. O Orfeão tornou-se um ponto de encontro não apenas para o desenvolvimento musical, mas também para a formação social e educacional de muitos dos seus membros.
A música, nesse contexto, tinha um papel quase transformador, com o objetivo de sublimar aspetos considerados inadequados, promovendo uma melhoria do comportamento e da postura dos indivíduos, especialmente nas classes sociais mais humildes. Reforça-se desta forma, no contexto inicial, mais do que uma relação etimológica, uma verdadeira associação desta prática ao orfismo enquanto escola filosófica, que se desenvolveu a partir do mito de Orfeu, como movimento espiritual que se caracteriza pela crença na imortalidade da alma, na purificação através da arte, da música e da filosofia. O Orfismo procurava elevar o espírito humano, acreditando que a alma poderia alcançar a união com o divino por meio do conhecimento e da prática espiritual.
Os Orfeões, inicialmente grupos masculinos de jovens trabalhadores urbanos movidos pelos ideais republicanos de progresso e regeneração social. No primeiro ano de existência, dirigido por Raul Casimiro, o Órfeão do Porto apresentou-se na sede da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Porto e no Salão do Clube Comercial e, após a implantação da República, nos edifícios da Guarda Municipal da Câmara Municipal do Porto e do Governo Civil, em sedes de jornais, no Teatro Carlos Alberto no evento comemorativo do aniversário da República Brasileira e no Ateneu Comercial, participando no Sarau literário-musical em homenagem a Leon Tolstoi.
O repertório alcançou o consenso social ao fazer apelo apenas à tradição escrita dos ‘grandes’ compositores da música ocidental e à tradição musical oral do ‘povo português’. Os saraus atraiam multidões e antes da parte musical havia sempre lugar para palestras. Neste contexto, encontramos no programa de setembro de 1921 durante a digressão do Órfeão do Porto à Corunha – no teatro “Rosalia Castro”, a abertura do sarau com uma Conferência de Leonardo Coimbra sobre o pensamento filosófico e poético de Portugal, ideias tiradas do seu livro “O pensamento filosófico de Antero de Quental”, palestra que o público seguiu muito atentamente tendo em conta a brilhante qualidade de oratória e didática do expositor. Desta forma o canto orfeónico possibilitava a de realização de uma utopia, de um ideal de progresso e regeneração social imbuído pelos princípios republicanos, através da “Arte” e da música.
O Orfeão do Porto não é apenas um grupo coral ou uma escola de música, mas uma verdadeira instituição que tem representado o espírito de perseverança e de preservação das tradições artísticas e culturais da cidade do Porto ao longo de mais de um século. Do seu acervo constam importantes obras de arte, nomeadamente programas, cartazes e cenários elaborados por Cruz Caldas. Aliás, Cruz Caldas projetou em 1942 o cenário de decorações em homenagem ao maestro Raúl Casimiro, organizada pelo Orfeão do Porto.
E a propósito da importância do seu acervo sublinha Plácido Martins: “O Órfeão dispõe de um acervo de grande importância que integra o painel cerâmico da autoria de Mário Silva, de 1966, o relevo com busto de Hernâni Torres da autoria de Sérgio Caldas, datado de 1940, inúmeros desenhos da autoria de Cruz Caldas, documentos gráficos e fotográficos, cartazes e programas de eventos, inúmeras medalhas e algumas condecorações.”
O Sr. Plácido, muito antes de ser o Presidente desta Instituição já tinha uma relação muito estreita com o Orfeão, pois, desde muito novo pertenceu ao coro do Órfeão e nessa altura para além do grupo Coral havia um grupo de Teatro. “Mesmo na altura em que eu por cá comecei a andar no coro, havia um grupo de teatro. Faziam teatro de revista, pequenas comédias, etc. Mas o grupo de teatro desarticulou-se, deixou de funcionar. O nosso palco é pequeno, também não dá para grandes peças de teatro. De maneira que a última utilização que se fez do palco foi para a cascata de São João.” Refira-se, a este propósito, que o ano passado foi o Orfeão que ganhou o primeiro prémio do concurso das Cascatas Sanjoaninas.
Atualmente, a maior fonte de rendimentos do órfeão e também o que atrai mais público à sua sede, são os bailes semanais. Os bailes das tardes de quinta-feira e domingo, que ainda acontecem neste espaço, são um testemunho de uma época em que o Orfeão do Porto representava o coração pulsante da vida cultural da cidade.
Antigamente, bailes como esses eram comuns em muitos pontos do Porto, mas o tempo e a evolução dos hábitos sociais diminuíram a frequência de tais encontros. O Orfeão, contudo, conseguiu preservar este evento, mantendo viva uma tradição que, mesmo em tempos modernos, ainda oferece uma oportunidade de socialização e de conexão entre os moradores da cidade e seus visitantes.
A este propósito, Plácido Martins refere que “a sala está sempre cheia e vêm cá muitos turistas. Muitos ouvem a música lá fora na Praça e sobem as escadas curiosos. Pagam bilhete como os outros, são 3 euros, e ficam por aí a dançar. Divertem-se bastante e para nós é uma fonte importante de rendimentos. Não só as entradas no baile, mas também a receita do Bar.”
Não admira que os turistas se sintam fascinados, primeiramente tentando identificar de onde vem a música vibrante que preenche o espaço público. Quando param para olhar, sentem o contraste entre a tradição viva e os elementos urbanos que cercam a praça da Batalha, como os hotéis e os edifícios de comércio moderno. Para eles, a música latina, envolta num toque de sintetizadores, é uma curiosidade, uma experiência sensorial inesperada.
A procura pela origem da melodia leva-os a olhar para o edifício do Orfeão, um local que talvez não esperassem encontrar numa zona central da cidade, rodeada pelo caos do trânsito e da vida urbana acelerada. O fato de a música sair pelas janelas da sede do Orfeão para a praça não é só uma questão de resgatar o passado. Ela faz parte de um movimento contínuo de integração entre a cultura popular e o espaço público, um convite para a participação e o envolvimento daqueles que, por curiosidade ou afinidade, se aproximam.

A Praça da Batalha transforma-se num ponto de encontro de sons e sentimentos, onde a música oferece não apenas uma pausa no tumulto da cidade, mas também um lembrete das camadas culturais e históricas que ainda formam a essência do Porto.
Este espaço, onde a tradição do Orfeão ainda tem lugar e onde a música se entrelaça com o ambiente urbano, reflete as tensões entre o moderno e o tradicional, entre a história e o presente. A música do Orfeão, com a sua carga emocional e cultural, é não só um apelo ao passado, mas também uma afirmação da continuidade cultural da cidade, uma maneira de manter vivas as tradições e de perpetuar a arte na vida cotidiana.
Hoje, o Orfeão continua a ser um dos pilares da vida musical e cultural do Porto, com uma rica história de contribuições para a música coral e outros eventos artísticos, sendo um ponto de encontro para quem aprecia a música e as tradições culturais da cidade.

Em resumo, o Orfeão do Porto é muito mais do que uma instituição musical. Ele representa a capacidade da cidade de manter viva a sua identidade cultural, adaptando-se ao novo sem perder de vista as suas raízes históricas. O Orfeão, com o seu repertório diversificado, os seus grupos – coral e etnográfico, os seus bailes, e a sua ligação com a comunidade, continua a ser um pilar da vida cultural portuense.
Maria João Coelho
Fotos de VÍTOR LIMA/OCidadão

Colaboradora/Filósofa