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Domingo, Outubro 12, 2025

O ensino falha numa capoeira com vinte patos – Por Clara Boavista

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Uma simples pergunta feita por uma professora de Matemática revelou, mais uma vez, um problema profundo no nosso sistema educativo: a ausência de raciocínio lógico e de compreensão conceptual nas salas de aula.


Uma professora de Matemática do 5.º ano contou-me um episódio que ficou a ecoar insistentemente na minha mente. Numa ficha de trabalho, perguntou aos alunos: “Se numa capoeira há vinte patos, quantos patos há em cinco capoeiras?”

A pergunta parece simples, quase ingénua. No entanto, quando praticamente uma turma inteira é incapaz de responder corretamente — quando uns somam, outros subtraem ou dividem, mas ninguém multiplica —, o problema ultrapassa a matemática e expõe uma falha grave no nosso sistema educativo.

Este episódio, aparentemente banal, denuncia uma realidade inquietante: a ausência de raciocínio lógico e de compreensão conceptual nas salas de aula, mesmo entre alunos considerados “bons a matemática”. A questão é mais profunda do que parece. Não se trata apenas de saber multiplicar ou dividir, mas de compreender por que razão tantos alunos, aparentemente competentes, não conseguem transpor o que aprenderam para situações concretas e simples.

Este pequeno episódio, que poderia parecer apenas uma anedota pedagógica, é, na verdade, o espelho de uma realidade preocupante. O problema não está em não saber o resultado — cem —, mas em não saber pensar. Em não reconhecer que a situação implica uma relação de proporcionalidade direta. Em falhar o raciocínio, não a conta.

Como professora de Física e Química, esta história inquieta-me. Precisamente porque sei que, sem raciocínio lógico, não há ciência possível. A Física e a Química vivem de relações, de proporções, de grandezas que variam em conjunto. Não basta saber operar números: é preciso compreender o que esses números significam. Como posso eu ensinar leis da dinâmica, conceitos de energia ou reações químicas a alunos que revelam, desde cedo, tanta dificuldade no raciocínio matemático?

A verdade é que este não é um caso isolado. É o reflexo de um sistema educativo que valoriza o resultado em detrimento do pensamento. Insistimos em ensinar os alunos a aplicar fórmulas, mas não a entender o que elas representam. Avaliamos respostas certas, mas não processos mentais. Criámos uma cultura escolar onde o erro é punido, em vez de ser explorado como parte natural da aprendizagem.

Muitos alunos chegam ao ensino secundário com boas notas, mas com lacunas profundas no raciocínio. Sabem resolver exercícios-tipo, mas perdem-se completamente perante um problema novo. São bons executores, mas maus pensadores. E esta é, talvez, a maior derrota da escola contemporânea: produzir competência técnica sem compreensão conceptual.

Não podemos, contudo, responsabilizar apenas os alunos. Os professores também são vítimas de um sistema que os sobrecarrega com programas extensos, metas curriculares e avaliações estandardizadas. Falta tempo para explorar, questionar, deixar o aluno errar e reconstruir o raciocínio. A formação inicial de professores, por sua vez, nem sempre privilegia a didática e a pedagogia: forma especialistas em conteúdos, mas não necessariamente mestres em ensinar a pensar.

E há ainda um contexto novo: o dos alunos que crescem rodeados de ecrãs, tutoriais e respostas instantâneas. Habituados à gratificação imediata, muitos já não toleram o esforço intelectual que o pensamento exige. Procuram a solução pronta, sem percorrer o caminho do raciocínio. A escola, por sua vez, ainda refém de métodos tradicionais, revela dificuldades em adaptar-se a esta nova realidade sem abdicar do rigor e da profundidade.

Por isso, acredito que o grande desafio da educação atual não é ensinar mais conteúdos, mas ensinar a pensar melhor. Precisamos de devolver à Matemática — e às Ciências — o seu papel de linguagem do raciocínio. Mais do que repetir fórmulas, o aluno deve ser levado a questionar, a justificar, a criar problemas, a explicar os seus próprios processos. Devemos valorizar o percurso, não apenas o ponto de chegada.

Quando penso na história da professora de Matemática e na lição das cinco capoeiras, percebo que a questão vai muito além dos patos. A pergunta era simples, mas o que ela revelou é vasto e profundo: a escola está a perder o sentido do pensar. Enquanto não formos capazes de cultivar o raciocínio, a curiosidade e a reflexão nos nossos alunos, estaremos a formar jovens que sabem operar, mas não compreender.

Porque ensinar não é apenas transmitir conhecimento — é acender o raciocínio. E esse, infelizmente, parece estar em vias de extinção.

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