8.7 C
Porto
11.6 C
Lisboa
12.9 C
Faro
Quarta-feira, Março 26, 2025

“No imaginário das pessoas o Ateneu Comercial do Porto já tinha desaparecido”

Quem o afirma é Rogério Gomes, presidente da direção. O clube conheceu períodos áureos, foi foco central da cultura no país, particularmente no norte e testemunhou, de forma ativa, as principais convulsões político-socias, a partir do século XIX Em finais de 1980 e até início de 2000, caiu numa crise profunda - sem direção, sem sócios ativos, sem frequentadores , sem dinheiro e com dívidas. Até que um grupo de associados, cansados de ver aquele marco histórico por terra, puseram mãos à obra e começaram a recuperar o histórico clube privado portuense. Nos últimos 15 anos, o Ateneu Comercial do Porto voltou a mostrar pujança, não a de outros tempos, claro, mas a possível numa época marcada pela isolacionismo, fruto da evolução tecnológica e da mais recente pandemia, a da Covid que, quer aceitemos quer não, mudou os hábitos mundanos de muita gente. A O Cidadão, Rogério Gomes contou o apogeu e o declínio, bem como o esforço feito para colocar o Ateneu na ribalta. Pelo meio, muitas histórias curiosas, cujos protagonistas foram grande nomes da cultura portuguesa.

As mais lidas

20240621 00001
Um simbolo histórico. Foto de ANTÓNIO PROENÇA

Quem desce a Rua de Passos Manuel, no Porto, depois de passar o Coliseu, encontra, do lado esquerdo, quase a chegar à Rua de Sá da Bandeira, um imponente e vetusto edifício, construido nuns terrenos comprados à Ferreirinha. Na parede frontal, sobre a porta, o ano de inauguração, 1885 e, ao lado, a placa que indica “Ateneu Comercial do Porto – 1869.” Este, o ano da fundação.

Em tempos, lugar de culto intelectual, o Ateneu passou por uma crise tão forte que esteve a ponto de encerrar.

Hoje, os sócios vão voltando, as iniciativas diversificam-se, a vida não é uma mera centelha. O  Ateneu ressuscitou do marasmo e de algumas dificuldades. Como refere o Presidente da Direção, Rogério Gomes – ” No imaginário das pessoas, o Ateneu já tinha desaparecido.”

Esteve quase se, há 15 anos, um grupo do qual fazia parte o atual presidente, não tivesse decidido dar a a volta à situação. Mas como é que uma instituição de referência na cultura e não só, cai tão fundo?

“Nos anos 1970 até meados dos 80, jogava-se no Ateneu; essencialmente o Bridge, ainda estamos filiados na Federação. Até à pandemia ainda se jogou. A dada altura, entre 70 e 80, foi-se transformando numa espécie de casino, com o póker em força. Grandes figuras da política, desporto, empresários, estavam aqui até às quatro ou cinco da manhã a jogar. Este grupo almofadou e até insonorizou a sala. Muitos sócios não ficaram nada agradados com a situação, não queriam ser associados ao jogo daquela forma. E mesmo algumas figuras, apesar de publicamente conhecidas, eram pouco “recomendáveis”. E os sócios foram abandonando. Constava que havia mau ambiente e foi um período trágico para o Ateneu.”

Como um clube não vive sem pessoas – principalmente os seus sócios – chegaram as dificuldades financeiras, o endividamento, a venda de património valiosíssimo por valores irrisórios e o vazio diretivo é, geralmente, a consequência. O Ateneu não foi excepção.

“Quando fui convidado a integrar uma direção, havia dívidas na ordem dos 60 mil euros, salários em atrasos, falta de pagamento ao fisco e muitas peças raras tinham sido vendidas ao desbarato.” – afirma o atual presidente

De diretor a presidente, foi um passo, mas Rogério Gomes marcou com clareza a sua posição.

“Quando assumi a presidência exigi que fossem escrupulosamente cumpridos três pontos – estar aberto às pessoas e incentivá-las a virem cá ; rentabilizar o espaço, alugando salas para café, salão de espetáculos e bar e, por último, não vender mais património. A partir daí as coisas foram-se equilibrando.”

20240621 00021
O Salão Nobre do Ateneu. Foto de ANTÓNIO PROENÇA

Na realidade, é “absurdo” ter um património magnífico  escondido das pessoas. “Cartas do Rei, a espada de D. Carlos, peças de Bordalo, Pousão, primeiras edições de Camões e Vítor Hugo, esquiço do primeiro monumento a Almeida Garrett, mobílias históricas, peças decorativas valiosas e com valor histórico e muitas outras que tem de ser mostradas às pessoas.” – observa Rogério Gomes.

E é o que esta direção vai fazendo. Abrir o Ateneu à cidade e às pessoas. E o presidente tem um sonho que gostaria de concretizar.

O meu grande desejo é fazer no Ateneu, na parte de cima, uma Casa Museu, onde pudéssemos expor o nosso valioso património.”

Mas, como em qualquer instituição privada, quem gere tem de fazer muitas contas para melhorar algo. E quando o dinheiro não abunda, tudo é caro. Neste momento, a preocupação maior é “ arranjar o telhado. Está em muito mau estado. Os orçamentos que temos para isso são elevadíssimos. E não faz sentido fazer mudanças por dentro quando o telhado deixa entrar água…” – diz Rogério Gomes.

20240621 00029
Por aqui passaram imensas atividades culturais e de recreio. Foto de ANTÓNIO PROENÇA

Biblioteca

Num imóvel onde, a cada passo, encontramos peças históricas, algumas em que a visão periférica é insuficiente, temos mesmo de  parar e observar, há um espaço que pode ser considerado o “ex-libris” do Ateneu – a biblioteca.

É, ainda, uma das maiores bibliotecas privadas da Península Ibérica. Há 20 anos seria a maior. “Temos 60  mil títulos e 80 mil volumes.” – afirma o presidente com orgulho indisfarçável. E continua “ Estão aqui verdadeiras raridades. Antes de haver a Internet era muito consultada por estudantes de História, Letras, Filosofia. Vinham cá quando preparavam teses. Por exemplo, não há muito tempo e esteve cá uma médica-investigadora que estava a preparar um trabalho sobre a Peste Bubónica na cidade do Porto. E foi ela quem nos informou que na biblioteca do Ateneu havia alguns livros únicos sobre o assunto.”

A biblioteca está dividida em duas partes – um,a a biblioteca geral, outra, a biblioteca “dos sócios“, um espaço mais pequeno onde podemos encontrar junto aos livros algumas raras obras de arte.

Caixeiros do Porto

O Ateneu Comercial do Porto é fruto da fusão da Nova Euterpe com duas pequenas associações. E foi fundado pelos Caixeiros do Porto, ou seja, dos “empregados do comércio”, como mais tarde vieram a intitular-se. Nessa altura, a sede era na Rua do Sol. Só em 1885 é que se instalou no atual  edífico, construído para o efeito. E nos Estatutos ficou logo plasmada a constituição de uma biblioteca.

“A biblioteca, que consta dos Estatutos, serviria para a formação que tanto preocupava o empregados comerciais. Além da vertente lúdica, o Ateneu serviria para ações de formação a esses profissionais, num tempo em que ser caixeiro de 1ª e caixeiro de 2º, fazia uma grande diferença, quer do conhecimento quer da remuneração. Um caixeiro que trabalhasse diretamente com o patrão já tinha uma situação profissional e social de relevo.” – explica

Mas depois, o clube passou a receber outras pessoas…

“A biblioteca contribuiu para atrair mais pessoas. Mas não foi só. A construção deste edifício na Rua de Passos Manuel, no centro da cidade, e o salão nobre e salão de espetáculos, chamou muita gente. Não só os empregados do comércio, mas as pessoas mais cultas e mais interessadas pelo que se passava no país. E aqui fizeram-se concertos muito importantes. Não podemos esquecer que no Porto havia dois ou três teatros. Tudo o que era música, apresentação de livros, conferências, acontecia aqui, no Ateneu.”

Grandes conferências com figuras muito relevantes na época – e ainda hoje o são.

Mouzinho de Albuquerque, Serpa Pinto, gente que vinha falar das suas incursões por terras inóspitas; mas também António Cândido, por exemplo.

António Cândido, o repressor, era ministro com a superentendência da polícia, na Revolução do 31 de Janeiro, marcou alguns pontos altos na  série de palestras no Ateneu. Rogério Gomes explica-nos esse particular, umas vez que no clube conviviam monárquicos, mas também liberais e republicanos.

António Cândido fez aqui duas conferências. A primeira sobre o escritor Victor Hugo e a segunda, centrou-a na Ética na Política, em linguagem atual seria ” a corrupção dos políticos e na política”. As suas convicções eram monárquicas, claro, mas não podemos esquecer que na Constituição de  22, em que ficaram consagrados os princípios ligados aos ideais liberais da época: representação, separação de poderes, igualdade jurídica e respeito pelos direitos pessoais, António Cândido é dos poucos que defende com veemência o direito ao voto universal ( homens e mulheres).”

Espaço livre

Desde a sua fundação que o Ateneu Comercial do Porto recebeu pessoas de todas as matrizes políticas. Ali conviveram monárquicos, progressistas, socialistas, republicanos, gente da Maçonaria – alguns foram presidentes- e conservadores. Nunca o clube tomou posições políticas ou político-partidárias. Sociais, sim, mas partidárias nunca. Neste particular os seus Estatutos foram sempre respeitados.

“E não podemos esquecer que com o Cerco do Porto e a presença de D. Pedro, a cidade era um reduto liberal. E as ideias ficaram por cá. Houve associados que foram presos após a Revolução do 31 de janeiro, mas o clube nunca esteve vinculado a qualquer iniciativa desse género. Aqui conviviam todos. O Ateneu era um espaço livre.”

O ano de 1890 é o do “Ultimato Inglês” e, em resposta , é criada a Liga Patriótica do Norte. O Ateneu foi muito importante também nesta fase?

Sem dúvida, a Liga Patriótica do Norte, criada, entre outros, por Antero de Quental teve aqui a sede durante algum tempo. Temos as atas do acordo entre ele e o Ateneu para que pudessem funciona aqui. O Ateneu tinha gente de todos os quadrantes e não tomava partido por nenhum” – refere Rogério Gomes. E conclui “Era uma associação privada, mas com regras muito firmes sobre a entrada nos espaços. Só sócios e frequentadores trazidos pelos sócios. Nem a polícia entrava aqui. Se não estivesse munidade um mandato judicial, não entrava. Ainda há cerca de dois anos impedi a polícia de entrar nos espaços mais privados do Ateneu.”

Esta presença da polícia teve apenas a ver com um a denúncia, por parte de um sócio, de que se fumava no Ateneu…

“Sim, tudo foi esclarecido, mas a polícia náo entrou.” – frisa o presidente da direção

Para realçar quão diversificada era a ideologia dos sócios, o nosso interlocutor informa que “A Monarquia do Norte, de Paiva Couceiro, era constituída por muitos associados do Ateneu. Os Estatutos eram claros –  a atividade partidária não cabia aqui. Cada sócio podiam enfileirar com quem quisesse, mas o Ateneu era um espaço para todos.”

20240621 00020
VIsta do primeiro andar, onde Rogério Gomes gostaria de ver uma Casa Museu. Foto de ANTÍNIO PROENÇA

Camilo

É, atualmente, considerado uma das figuras literárias mais relevantes do século XIX. A obra camiliana é estudada em muitas universidades do país e não só. Sem dúvida, um dos maiores romancistas portugueses

Não foi fácil a sua vida (1825 -1890) e, apesar de lhe ter sido atribuído o título de 1º Visconde de Correia Botelho, pelo rei D. Luiz, nunca deixou de ser uma figura controversa por onde quer que passasse.

E passou pelo Ateneu Comercial do Porto. “Mas nunca foi aprovada a sua candidatura a sócio.”

“O Camilo era uma personagem muito particular. Andava sempre sem dinheiro; aos jornais (no Comércio do Porto havia documentos que o comprovavam) pedia o pagamento antecipado das colaborações para poder sobreviver. Mas, apesar de não ser sócio, era frequentador, andava sempre por aqui. De tal modo que temos  registo de dois procesos contra ele – que não era sócio e frequentava as instalações ; numa das festas, fazia parte da lista de convidados, o que levou à realização de uma Assembleia Geral para decidir se  podia entrar ou não.”

Obviamente que esses sócios tinham um ódio de estimação ao homem…

“Eram da família da Ana Plácido. E tinham muito poder por aí.”

A título de curiosidade, e talvez seja lenda, falava-se na época que o mês em que esteve fugido da polícia, devido à questão do adultério, te-lo-á passado nas instalações do Ateneu. Ainda na sede da Rua do Sol. Lenda ou não, fica o registo.

Sena e a Antologia

Por volta de 1889, o Ateneu iniciou uma campanha para a transladação de Almeida Garrett para o Panteão Nacional – texto redigido por Ramalho Ortigão – e a construção de um monumento ao escritor pioneiro do Romantismo. O primeiro subscritor foi o Rei D. Luíz, depois a Rainha e, a seguir, os Infantes. Uma campanha que durou 20 a 30 anos.

A Câmara do Porto acabou por assumir e pagou o monumento que ainda lá está em frente e que foi inagurado em 1954 ou 1955. Mas o dinheiro, que entretanto ficara das doações, em vez de ser devolvido, serviu para o Ateneu fazer um concurso, chamado Prémio Almeida Garrett e que teve duas edições. Na primeira, com ensaios (ganha por um jornalista de O Comércio do Porto), a segunda, em 1953, de poesia. Nesta concorreram todos os conhecidos poetas portugueses. O júri foi constitído pelo Gaspara Simões, O Vitorino Nemésio e um representante do Ateneu. E o vencedor foi o Miguel Torga. Foi o primeiro prémio literário que obteve.”

Mas faltou “fair play” aos vencidos, não foi?

“Só ao Jorge de Sena!”

O que aconteceu?

“Quem ganhou o prémio, que tinha um valor considerável, foi o Miguel Torga; veio dizer que não precisava do dinheiro e que, com ele, fizessem uma antologia dos  poemas do concurso. O Jorge de Sena indignou-se! Mandou uma carta para cá a dizer “se o Torga não quer o dinheiro não devia ter sido admitido a concurso”. E não autorizava que fosse colocado qualquer poema seu nessa antologia.”

20240621 00026
Viriato, uma das muitas estauetas existentes neste antigo clube literário portuense. Foto de ANTÓNIO PROENÇA

Outros prémios

A institituição, além do seu vasto e rico património, é um poço de histórias. Apesar de remoques, zangas a sério e discussões acaloradas, sempre houve distinção entre associação e associados. Estes, com total liberdade de ação. O Ateneu, respeitado por todos. As ideologias nunca tiveram a força suficiente para corromper os estatutos. Prova disso é a sua longevidade.

Preocupação sim, mas com eventos culturais. Como os já referidos e outros, porque houve muitos, entre os quais a homenagem aos cem anos do nascimento de Vitor Hugo. Ou o Prémio Viana da Mota.

“O Prémio Viana da Mota era dirigido aos alunos das antigas escolas comerciais e industriais. A entrega era feita no Palácio de Cristal que chegava a ter uma assitência a rondar as 5 mil pessoas.” – informa Rogério Gomes

O Ateneu Comercial do Porto teve relevância nacional foi, e quer voltar a ser, um  bastião cultural do norte. O seu presidente está fortemente empenhado em voltar a atirá-lo para o lote dos principais centros culturais e de lazer da cidade . Retirá-lo da crise, dar-lhe nova vai, paulatinamente, sendo feito.

O Rei D. Luiz foi muito amigo desta casa. Mas também o Alberto Uva e o António Macedo. O Ateneu aceita todas as pessoas que o queriram ajudar. É uma instituição onde cabe toda a gente, toda a discussão, menos as querelas partidárias.” – sintetizou Rogério Gomes

Distinções

Instituição de Utilidade Pública, 1926

Louvor do Governo Português, 1926

Comendador da Ordem de Instrução e Benemerência, 1928

Grande Oficial da Ordem Militar de Cristo, 1934

Medalha de Mérito (Ouro) da Cidade do Porto, 1962

Membro Honorário da Ordem do Infante D.Henrique, 1989

Medalha de Mérito (Ouro) da Cidade do Porto, 1989

 

Reportagem OC – A.Jorge Santos (Texto) e António Proença (Fotos)

- Publicidade -spot_img

Mais artigos

- Publicidade -spot_img

Artigos mais recentes

- Publicidade -spot_img