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Quinta-feira, Março 27, 2025

Mochilas, paisagens, danças e barcos ou a dimensão humana dos Caminhos de Santiago

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Maria João Coelho
Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa

Coube-nos viver o tempo de uma pandemia acompanhada de respetivos confinamentos.

Aproveitei os mesmos para colocar leituras em dia e, como cinéfila inveterada, ver uma panóplia de filmes, sobretudo, os disponíveis nas várias plataformas streaming. Tropecei em “The Way” (2010, Emílio Estevez) e, a partir daí, a minha curiosidade pelos Caminhos de Santiago não mais deixou de me desassossegar.

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Fotografia de Maria João Coelho

Li vários blogs e testemunhos sobre o assunto, comprei livros e procurei outros filmes. No mesmo ano, comemorava os meus 50 anos de idade. Devido ao confinamento não podia fazer uma festa com muitos convidados como tinha imaginado. A maior parte da família e os amigos que tinham até aí feito parte da minha história pessoal estavam distantes fisicamente e as regras da DGS eram apertadas e para cumprir. Decidi então, que a melhor forma de celebrar a entrada na idade dourada, esse marco histórico do quinquagésimo aniversário, seria percorrer a pé o Caminho de Santiago.

Desafiei duas amigas que, sem hesitar, alinharam. De comum acordo optámos por fazer o Caminho Português da Costa: Porto a Santiago via Valença por etapas (280 kms). Sim, porque mesmo sendo a mais nova do grupo, dizia-me o bom senso que deveríamos saborear o Caminho e não fazer sacrifícios exagerados e desnecessários. Por isso, o planeamento foi pensado de acordo com a disponibilidade, o conforto e as nossas capacidades físicas e psicológicas, consciente que ainda assim, seria sempre um desafio com inúmeras possibilidades de imprevistos e incertezas.

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Percorri, pela primeira vez, o Caminho em 2021 e desde aí, regresso anualmente para fazer algumas etapas. Até agora, já fiz todo o caminho Português da Costa (Porto a Valença do Minho) seguido do caminho central Português (Valença a Santiago de Compostela), o Caminho da Costa Espanhola de Caminha a Pontevedra via Vigo, e, no último fim-de-semana prolongado fiz as 3 etapas da Variante Espiritual (Pontevedra a Santiago de Compostela).

Tenho várias Credenciais do Peregrino cheias de bonitos e carismáticos carimbos e obtive duas Compostelas que atestam ter já caminhado 560 kms. A primeira Compostela foi obtida a três, agora somos duas no caminho!

Não consigo escolher qual foi a melhor etapa ou o itinerário mais bonito. Continuo com o mesmo móbil – a dimensão humana do Caminho! É essa vertente que quero destacar, a mesma que me conquista.

O Caminho tem-se revelado sempre diferente e mágico, é uma metáfora, mas, é verdade que é transformador, inspirador. Tem sido uma descoberta pessoal, uma vivência que me equilibra e me permite desafiar limites: físicos, psicológicos, sociológicos, culturais!

O Caminho continua a desassossegar-me, a impelir-me a ir, e sempre que parto abre-se a minha disponibilidade para acolher todos os encontros. Tem sido nesta abertura que me tenho cruzado com pessoas de todo o mundo. Tenho conhecido pessoas incríveis, ouvido histórias de vida – umas mais doces outras mais sofridas.
Poderia partilhar várias histórias, uma forma de agradecer tudo o que o Caminho me tem dado.

Há etapas bastante difíceis e exigentes, como aquelas em que se tem de caminhar sobre gravilha ou subir montes ingremes, debaixo de sol escaldante, como a subida ao Mosteiro de Poio ou ao de Armenteira, ou então, temos de caminhar sob chuva torrencial como nos aconteceu na subida entre o albergue de Mos e a Capela de Santiaguiño e, em seguida, tivemos de enfrentar ventos fortes nas descidas sinuosas antes de chegarmos a Redondela.

Nestes momentos, em que o cansaço e as dores se tornam presentes, apetece desistir! E é aí que o Caminho nos surpreende de forma imprevisível, como nos aconteceu certa manhã perto de Caldas de Reis.

Tínhamos iniciado o percurso ao alvorecer, e ao fim de 15 quilómetros ainda não tinha parado de chover. Chuva forte, trovoada, vento frio! Dia de temporal em pleno outono, que nos obrigava sempre que podíamos a parar para nos abrigar. A dada altura, quando éramos mais de cinquenta peregrinos, entre portugueses, espanhóis, holandeses, russos, filipinos, alemães, ingleses…invadimos um pequeno café! Estávamos todos amontoados. Uns sentados no chão, outros a tentar tirar roupas e calçado molhado, uma fila enorme para a casa de banho, todos a comentarmos a dificuldade da etapa, uns a chorar outros a fazerem brindes com cañas numa tentativa de levantar o ânimo!

Éramos estranhos, mas partilhávamos as mesmas dificuldades, a mesma experiência desafiante e isso tornava-nos mais humanos. E, subitamente, o sol abre e aparece, sabe-se lá de onde, um jovem galego a tocar saxofone…de forma inopinada e espontaneamente começámos todos a dançar no meio da estrada, ríamos e bailávamos juntos, abraçávamo-nos…foi um momento mágico! Já com o estômago e mente compostos, refeitos da fragilidade, continuámos o trajeto sempre em conjunto e, na chegada ao fim da etapa, despedimo-nos uns dos outros como se fossemos amigos íntimos.

Ao longo dos vários itinerários, tenho-me deparado com pessoas a fazer todo o trajeto sozinhas, na sua maioria mulheres! Admiro a sua coragem e perseverança! Sobretudo, as das que tive oportunidade de conhecer como uma nova-zelandesa com setenta e tal anos, perto de Vigo, ou uma senhora australiana que tinha voado para Lisboa e tinha começado a caminhar no Porto 13 dias antes. Ou uma jovem mãe alemã que fazia o caminho com a sua filha de ano e meio e a quem se juntou um grupo de americanos e mexicanos que não mais a largaram, entre eles, um homem de 80 anos.

Desta vez, cruzámo-nos com um grupo fantástico do Porto, onde se incluíam mãe e filho, uma mulher bem arejada e escorreita nos seus 83 anos, incomodada por estar a causar maçada ao filho, uma vez que este tinha de carregar uma mochila bem pesada por incluir os seus pertences.

Gente pura! Ou um grupo de gaiatos de uma paróquia de Famalicão que tal como nós, no fim de uma etapa aproveitaram para irem a banhos no mar, felizes por terem chegado cedo e por desfrutarem de uma praia quase deserta.

O Caminho é místico! Provoca em nós uma montanha-russa de emoções e sentimentos. Proporciona encontros que despertam solidariedade e empatia, possibilita a partilha de experiências à mistura com pensos para bolhas, vaselina, barras de cereais, chás e copos de vinho ou cerveja que se erguem a cada conquista, diga-se cada etapa concluída! As paisagens convidam à reflexão e o cansaço por vezes turva-nos o pensamento.

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Fotografia de Maria João Coelho

Desde a idade média, com a descoberta do túmulo de Santiago Maior que as peregrinações a Compostela tornaram o caminho numa das mais importantes rotas de culto cristão! Mas, para além da vertente religiosa e espiritual, o Caminho e Santiago tornou-se num pilar da nossa identidade europeia o que levou o Conselho da Europa em 1987 a reconhecê-lo como Primeiro Itinerário Cultural Europeu. Esta dimensão cultural foi reforçada com o reconhecimento pela UNESCO como património universal da Humanidade.

A dimensão humana do caminho é quase indescritível, inefável.
Quando se caminha ao longo da Costa a maresia dá-nos alento. O som das ondas do Atlântico por vezes confunde-se com o sopro do vento que faz cantar a concha pendurada na mochila a lembrar melodias de outros tempos. Nem sempre é fácil caminhar nos passadiços devido à areia, mas a nossa orla marítima é de uma beleza ímpar e o cheiro a sargaços, bem como as estórias dos pescadores, rapidamente nos fazem desvalorizar qualquer queixume. Em Angeiras, último porto piscatório tradicional antes de se chegar a Vila do Conde, descobrimos a mestria dos pescadores a tecerem as redes antes de se fazerem ao mar!

Mais adiante, a paisagem começa a mudar para veredas e prados. Quando atravessamos os prados galegos há um inebriante cheiro a cidreira e funcho.
Os nossos pés trilham caminhos e pedras que ao longo dos tempos foram antes de nós pisados por milhares de peregrinos de todo o mundo. Calcorrear lugares recônditos, por vezes desgastados, fazer partes do percurso com subidas rasgadas e pedras soltas, atravessar troços florestais sem rede, sem água…ou fazer vários quilómetros em alcatrão quente com atenção redobrada devido ao trânsito, fazem parte do caminho.

Mas, há o reverso da moeda! Há percursos arrebatadores ao longo de rios e riachos, monumentos e mosteiros escondidos, fortalezas a testemunhar vitórias de outrora, bucólicas paisagens rurais, moinhos e até uma representação de uma aldeia Galega …. Do mesmo modo que há cansaço, que parece que o corpo está dormente em determinadas alturas, ou que suamos em pinga, também há riachos refrescantes, águas termais e o mar para nos amaciar os pés. Quanto à gastronomia, é melhor a nossa que a galega, mas temos sempre comido bem e bebido melhor! Não nos têm faltado bons momentos de convívio à mesa.

Recordo a altura em que realizámos a etapa de Viana do Castelo a Caminha, era dia de S. Martinho! Depois de atravessadas as dunas de areia em forma de meia-lua junto à foz do rio Âncora, começámos a marginal marítima em direção ao Forte da Lagarteira e eis que, vimos um animado grupo a cantar e dançar que nos chamava! Ora, como boas rapioqueiras não nos fizemos rogadas e alinhámos num magusto com sotaque francês e jeropiga caseira. Era um grupo de ex-emigrantes franceses que há vários anos comemoram juntos o magusto e que nos acolheram no seu convívio.

Os momentos menos bons também são lembrados. Como o ocorrido na chegada a Viana do Castelo. Depois de um longo e quente dia a caminhar, grande parte entre pinhais e montes, com o corpo dorido, a entrada pela bela cidade de Viana do Castelo faz-se pela icónica Ponte Eiffel sobre o rio Lima. Desde que tínhamos deixado a Sé do Porto, esta foi até então, a parte mais difícil do Caminho. Não sei se devido às minhas vertigens agudizadas pelo tabuleiro metálico, que ora parecia abanar com o peso dos comboios no tabuleiro inferior, ora com o vento provocado pela proximidade dos camiões que passavam bem rente, certo é que, a sua travessia parecia infindável e terminei sentada nas escadas “branca como a cal”, deixando as minhas amigas apreensivas! Mas esse dia teimava em terminar mal! O regresso a Esposende, onde tínhamos o carro, estava previsto ser feito de comboio, mas como nos atrasámos, tínhamos de ir no último autocarro. Porém, mesmo estando as três no cais indicado no visor, ficámos apeadas. Para nosso espanto o autocarro que dizia Esposende entrou na garagem em alta velocidade, atravessou frente aos cais e saiu…incrédulas não tivemos outro remédio senão regressar ao ponto de partida de táxi!

Mas, as piores experiências envolvem barcos! Da primeira vez que o percurso requeria um barco, foi para atravessarmos de Caminha a La Guarda pelo rio Minho. Com o ferry desativado, tinha lido que a travessia com maior segurança seria através do serviço Xacobeo Transfer. Reservei os nossos lugares previamente, e à hora marcada lá estávamos. Nós, um casal de italianos e duas mulheres que, pela constituição física e língua, nos pareciam nórdicas! Nada de barco!!! Trinta minutos depois da hora continuávamos à espera. Até que, via whatsapp, recebi uma “sms” a informar que o patrão do barco estava a chegar.

Chegou.. em estado quase ébrio! Não atracou à primeira e quando o conseguiu obrigou-nos a saltar de um pontão com mais de metro de altura! A embarcação era pequena e baloiçante, e quando nos encontrávamos a meio do rio parámos subitamente. O Patrão informou que era necessário reabastecer, tinha ficado sem gasolina. Por momentos entreolhámo-nos silenciosamente! Confesso que vi “a coisa malparada”, mas, depois de uns desequilibrados movimentos, o galego lá conseguiu esvaziar os galões de gasolina para o depósito e prosseguimos. Julgo que a chegada a terra firme foi saboreada como a mais valente das conquistas!

A nossa segunda e, para mim última vez que recorri a um barco, foi na última etapa da Variante Espiritual. De Vilanova de Arousa até Pontecesures o caminho faz-se por rota marítima, Rota do Mar de Arousa e do Rio Ulla ou também chamada de Traslatio. Segundo a lenda cristã, os discípulos de Santiago, após a sua decapitação, roubaram o corpo e transportaram-no numa barca de pedra sem tripulação que, guiada pelos anjos e por uma estrela, foi conduzida para a foz do rio Ulla, até atracar em Iria Flavia, a atual cidade de Padrón.

Tal como da primeira vez, reservei o barco antes, mas, não aquele que pretendia, tive de recorrer a uma empresa turística, pois, devido à saturação do caminho já não havia lugares disponíveis. A partida era às 8 horas da manhã! Uma manhã fria em que estava completamente afónica. Era uma pequena lancha lotada de portugueses. Sentei-me de frente com medo de enjoar e, supostamente, um pouco mais protegida. Desta vez, o problema foi a velocidade, o patrão era corredor ou parecia… A lancha parecia levantar voo e nós com ela… felizmente não enjoei, mas houve momentos em que tive de me segurar bem, até porque a senhora ao meu lado guinava para cima de mim e quase me atirava fora do assento! Comecei a sentir o meu fado qual Vasco da Gama perante o Adamastor! Já nem me apetecia olhar para os cruzeiros, nem para as barcaças onde é criado o mexilhão e que constitui o motor económico desta região. Cada travagem fazia-me sentir a minha vulnerabilidade, cada palavra do patrão do barco parecia inflamar em mim um medo inaudito e acentuava o frio gritante! Felizmente, a velocidade encurtou a viagem em meia hora. Nem imaginam o quão bem me soube o cálice de vinho do Porto que os amigos da Invicta, reencontrados no primeiro café de Pontecessures me ofereceram! Sobre barcos estamos conversados, haja os itinerários que houver no futuro! E haverá… Porque como alguém me disse, ou penso que disse, podemos sair do caminho, mas o caminho não sai de nós.

Sempre duvidei que exista uma solidão total. Ninguém caminha só. Mesmo os que optam por fazer o caminho a sós ou quando percorremos quilómetros sozinhos e em silêncio. Há no mais íntimo do nosso ser, no âmago do nosso coração uma multidão que caminha connosco. O coração é o verdadeiro profeta que antecipa o que os olhos velam e o pensamento ainda encoberta.

Para além dos que nos acompanham e daqueles com quem nos cruzamos, caminhamos com os que nos são mais próximos, aqueles que amamos e dhttps://ocidadao.pt/wp-admin/media-new.php448253988 7976485649068877 4667430427337014738 ne quem nos lembramos, os que fazem parte da nossa história e os que já só vivem nas nossas memórias. Caminhamos com todos! Por vezes, ouve-se a voz interior e a mente discursiva reencontra os seus pontos cardeais.

 

Durante o caminho, fazem-se juízos e emerge a esperança na transformação, na renovação desejada ou tão só, o recarregar de baterias e o recomeçar de um novo caminho, ou o recomeçar de algo ainda que seja o mesmo, com um novo olhar, um novo sentir. Será esta a metáfora do Caminho de Santiago?! Quando me fizer novamente ao Caminho de mochila às costas vou deambular em busca de tão incauta questão…


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