O Cidadão foi espreitar alguns dos últimos ensaios em véspera do início da 35ª Edição do Festival Internacional de Marionetas do Porto – o FIMP’24. O seu diretor artístico, Igor Gandra, acolheu-nos na sala de ensaios do Teatro Municipal do Porto Rivoli em pleno trabalho criativo da peça Capital Canibal.
Começamos a nossa foto reportagem a falar desta performance que, tem como protagonistas principais as salsichas! De acordo com a sua sinopse é para “os estômagos mais fortes e os paladares mais requintados “.

Foto de ANTÓNIO PROENÇA
Em jeito de (ante)visão, desafiamos o nosso interlocutor a falar-nos um pouco sobre esta peça que nos parece direcionada para pessoas com consciência. No papel de encenador/ator, Igor Gandra levanta a «ponta do véu» de Capital Canibal, uma estreia absoluta como “uma cocriação entre a Sonoscopia e o Teatro de Ferro, que ao longo de dois anos e meio foi trabalhando esta ideia de um modelo capitalista que se vai devorando a si próprio. Se quisermos um exemplo extremo desta espécie de autofagia é exatamente a guerra! […] Mas, vamos descobrindo que esta forma de canibalismo está presente em muitas outras coisas…e, por isso, o Gustavo Costa (diretor da Sonoscopia) decidiu usar música gerada por inteligência artificial… “
Em síntese, o nosso interlocutor remata: Capital Canibal fala-nos desse “Mundo-salsicha…em que tudo é triturado, recondicionado, Re-circulado… dentro do sistema mercantil! Sejam os ativos tóxicos, informação, tempo de vida…tempo de lazer… De repente tudo é absorvido! E agora, surge este elemento novo – a inteligência artificial, que recolhe e recicla tudo o que vamos produzindo.”

Foto: Direitos Reservados
Este ano, o FIMP celebra as bodas de Coral! O mote é uma frase enigmática: Existir. Resistir! Desistir… foi também a partir daí que prosseguimos a conversa com Igor Gandra. Agora, no papel de Diretor Artístico do Festival. E focámo-nos, essencialmente, na palavra final – Desistir e, suas reticências, para aferirmos o seu significado neste contexto.
Para Igor Gandra: “O Coral é um organismo muito interessante entre o vegetal, o animal e o mineral … e ao mesmo tempo um ecossistema. E o Festival também é assim, algo complexo e delicado. (…) Esse tripé diz respeito ao programa/espetáculos que os artistas construíram e nos quais fomos encontrando a prevalência de cada uma dessas ideias…um certo espírito de tempo ou outras coisas… O tronco principal do programa contém uma modalidade ou variações de cada uma dessas ideias… umas mais presentes do que outras em cada um dos espetáculos…”
Nesta edição “os corais” serão compostos por 18 espetáculos de 8 companhias, nacionais e estrangeiras, que se desenvolverão em 10 espaços-lugar da cidade do Porto.
Lugares como os Teatros Municipais: Rivoli e Campo Alegre; Teatro Carlos Alberto, Teatro de Ferro, Teatro do Bolhão, Teatro de Belmonte, Mosteiro de São Bento da Vitória, Círculo Católico de Operários do Porto, Metro da Trindade ou o Teatro Constantino Nery (Matosinhos)
Lembremos que o FIMP iniciou em 1989 com Isabel Alves Costa e com João Paulo Seara Cardoso, mas desde há 14 anos que está sob a direção de Igor Gandra e, portanto, há também um legado de construção que é inerente a este último, e no qual é visível a sua marca. Logo, torna-se pertinente inquirir o mesmo, sobre as dificuldades e vitórias a salientar ao longo deste trajeto, fazendo emergir uma resistência própria, pois, para o nosso interlocutor a existência do Festival já é em si uma vitória: “Continuarmos a existir ao fim deste tempo todo já é uma grande vitória. O Festival, tal como as estruturas culturais do nosso país em geral, atravessou momentos muito difíceis e, embora, não tivéssemos assumido nada como garantido, o que é certo é que não só o continuámos a manter em funcionamento como o fizemos crescer!”
Esse crescimento fez-se sentir também em termos de espaços culturais. Esta entrevista decorreu no Teatro Rivoli e, como sublinhou Igor Gandra: “quando eu fiquei à frente do Festival não tínhamos o Rivoli como espaço de representação, tão pouco como parceiro.” O festival está atualmente presente nos espaços de todos os seus parceiros graças à conjugação de múltiplas vontades.
Uma existência que persiste e resiste…não sem vicissitudes ou obstáculos e, também com guerras.
Guerra, adultos, crianças e especialistas
A companhia libanesa Collectif Kahraba, que teria a seu cargo a abertura do FIMP’24, precisamente esta noite no Teatro Carlos Alberto teve de cancelar o seu espetáculo.
Afinal, a Guerra no Médio Oriente interfere na nossa vida aqui no Porto e, de modo concreto, aqui no FIMP? (silêncio) “Fomos confrontados há muito pouco tempo com esta realidade de que a peça não poderia ser apresentada no FIMP! A companhia teve de cancelar o seu espetáculo, e, foi um choque com a realidade… (…) Apercebemo-nos mesmo a esta distância que, a guerra também nos toca! É um motivo de grande tristeza… nunca seria outra coisa (…) e de grande preocupação, também! Porque uma parte da equipa está em Beirute e, é uma situação de grande gravidade! Mas, não perdemos a esperança de poder vir a apresentar no futuro a peça, assim que possível”. E remata: “A Cenografia está guardada e assim que os artistas tiverem condições, a peça será apresentada. “
O FIMP é um festival essencialmente orientado para adultos,… Esta edição apresenta inclusivamente uma peça classificada para maiores de 18 anos – Lullaby for Scavengers do Inglês Kim Noble. Igor Gandra destaca-a como uma “Peça bastante diferente em que o ator se faz acompanhar por um esquilo, que funciona também como alter ego, é uma peça muito criativa, mas perturbadora para uma série de sensibilidades, é ainda um espaço de reflexão sobre o próprio lugar e história da performance…mas é também uma peça em que o artista se expõe numa grande vulnerabilidade e solidão, com recurso a materiais inusuais, inopinados, que não vão deixar ninguém indiferente.”
No outro extremo, para os mais pequenos e para as famílias, Igor Gandra destaca Fimpalitos – um atelier sustentável, um clássico no festival que, possibilita a criação de marionetas de madeira, a partir, de sobras de cenografias. Uma atividade intergeracional de criação de mascotes que no fim irão habitar as casas dos seus construtores!
Corais construídos ao longo destes anos num enamoramento criador que une o FIMP aos artistas e ao seu público, constituem uma cartografia artística que pode ser descoberta através do seu espólio e arquivo. Neste âmbito, o público pode revisitar uma década de registos fotográficos em Fimpografias de Susana Neves.
Reservado aos especialistas há também um Centro de Documentação, justificado pelo Diretor do Festival porque “ Há um público, não muito numeroso, mas há pessoas com interesse nestas matérias…(…) o Centro de Documentação começa a ter ligações a estruturas congéneres e, a estabelecer relações com publicações especializadas na arte das marionetas e das formas animadas por essa europa fora…”, e, por outro lado, este Centro de Documentação surge “ da obrigação (do Festival) para com o presente, obrigação de o ir documentando e, pela missão de preservar a história do FIMP e de a tornar acessível”…
Já que falamos de público, O Cidadão, quis saber como é o público do Porto-cidade. Para Igor Gandra é um público diversificado: “há de tudo, há as pessoas que vivem o FIMP desde a primeira edição e, há ainda os que o desconhecem. Nós temos esta parceria muito bem estruturada com vários Teatros e Espaços da Cidade e queremos ir ao encontro de todos… É neste âmbito que temos A Abertura da Abertura, um pequeno filme a ser exibido nas estações do Metro do Porto e que ao ser visto por milhares de pessoas, nos permite fazer parte do imaginário coletivo, mesmo daqueles que não vêm ver os nossos espetáculos.”
Não terminámos esta reportagem sem antes nos deslocarmos ao Teatro do Campo Alegre para espreitar o projeto “Aruna e a arte de bordar inícios”, da espanhola Ainhoa Vidal; regressa ao FIMP com a estreia de um espetáculo que pretende refletir sobre as hipóteses de recomeçar após uma catástrofe. Nas palavras da própria artista, que é simultaneamente a responsável pela criação, interpretação, texto e figurinos; este é “Um espetáculo de sombras e vídeo, pensado a partir de uma catástrofe natural de uma cidade e, em particular, da situação de uma criança – Aruna – a qual perde a gravidade.”

Foto de ANTÓNIO PROENÇA
Ainhoa Vidal concebe o teatro como reflexão. E sublinha: “É uma reflexão do momento que estamos a viver, uma reflexão sobre a reconstrução, sobre a coragem de continuar olhando à nossa volta. Aruna só consegue recuperar a gravidade, a humanidade, quando olha à sua volta e descobre que todos têm a sua própria catástrofe. “ Neste projeto perspetiva-se uma ligação entre a cidade e o indivíduo, na pessoa desta criança. E com esta mensagem de esperança assente numa “visão de arte para todos baseada no pensamento, no sentir, na empatia com o outro”. Ainhoa Vidal reforça a ideia de “Teatro como poder, Teatro como lugar de empatia”.

Foto de ANTÓNIO PROENÇA
Nos próximos 10 dias, o Porto veste-se de teatro e recebe o FIMP, como remata Igor Gandra: “o festival tem um programa desafiante, é muito diverso e plural e requer uma consulta atenta para descobrir essa mesma diversidade atrativa…”.

Colaboradora/Filósofa