20.2 C
Porto
19.6 C
Lisboa
19.9 C
Faro
Terça-feira, Setembro 17, 2024

A “Púdica” e Manipuladora Censura – Por Onofre Varela

As mais lidas

Onofre Varela
Onofre Varela
Jornalista/Cartunista

Nota Prévia aos leitores de O Cidadão: A colaboração que mantenho nos jornais regionais Gazeta de Paços de Ferreira (há cerca de 20 anos) e Semanário Alto Minho (há dois anos) escrevendo em defesa do pensamento Ateu, na comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos assumi outro tipo de textos, fazendo uma pausa nos textos ateus, onde abordo a Censura aos jornais feita na Ditadura… e não só.

Trata-se de uma dúzia de textos que dão o meu testemunho da Censura exercida sobre quem escrevia nos jornais, não só no tempo de Salazar e Marcelo Caetano, mas também (e principalmente, por experiência própria) depois de restabelecida a Democracia e a Liberdade de Expressão que a Constituição da República Portuguesa consagra. É essa colecção de textos que começo, hoje, a publicar no jornal O Cidadão.


A “púdica” e manipuladora Censura


Este número foi visado pela Comissão de Censura” era um recado estatal que todos os jornais estavam obrigados a imprimir dentro de um rectângulo no rodapé da primeira página. O governo de Salazar censurava as notícias, não deixando publicar o que não interessava à ditadura… mas também é verdade que ninguém podia dizer que os jornais eram censurados em segredo… porque a “prova do crime” estava escarrapachada na primeira página de todos os jornais!… (Depois de Abril de 1974 censurou-se em segredo).

Recordo uma tragédia causada pelas águas da chuva de um Inverno rigoroso que fez transbordar o Tejo, isolou povoações e provocou mortes. Estávamos em Novembro de 1967 e a precipitação das fortes chuvas equivaleu a um quinto da precipitação anual. Na madrugada de 25 para 26, o Vale do Tejo foi inundado por cheias que ocorreram em toda a região de Lisboa.

Foram atingidos os concelhos de Loures e Odivelas, afectando as freguesia de Póvoa de Santo Adrião e Olival Basto, Vila Franca de Xira e Arruda dos Vinhos. Na estação meteorológica do concelho de Lisboa foram registados 115,6 mm de precipitação num período de 24 horas, e na de São Julião do Tojal (concelho de Loures) 111 mm em apenas 5 horas.

Cheia do Teja 1967
Panorama das cheias no Vale do Tejo em Novembro de 1967. Direitos Reservados

Várias causas contribuíram para a gravidade das cheias, não sendo estranha a habitual falta de limpeza dos rios e ribeiras, mais a canalização subterrânea com dimensão insuficiente. As inundações, associadas às precárias condições de habitação e à falta de ordenamento, destruíram casas, estradas e pontes, deixaram milhares de pessoas sem abrigo e provocaram um número de mortos que permanece por contar até hoje.

A censura mandou parar a contagem de cadáveres aos 462, mas estima-se que o número de vítimas mortais daquela noite tenha chegado aos 700. As zonas de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas, Oeiras e Sintra foram as mais afectadas por aquela que é considerada a maior catástrofe natural em Portugal depois do terramoto de 1755. À forte e ininterrupta chuva, juntava-se a água do rio que transbordou. Testemunhas disseram que enquanto as pessoas dormiam as águas subiram quatro metros em cinco horas, e no final contabilizaram-se vinte mil casas destruídas!

A dimensão da tragédia só foi percepcionada por quem a viveu, pois pelos jornais só se sabia que houve algumas inundações provocadas pela enchente do rio. A destruição e a morte, nas suas verdadeiras dimensões, eram para ser silenciadas.

À data eu cumpria serviço militar em Angola e as notícias que nos chegavam pela rádio apontavam para a necessidade de ajudar as populações afectadas. Criou-se um movimento militar animado pela ideia de cada soldado doar 20 ou 50 escudos do seu pré naquele mês, o que faria uma soma com alguma dimensão. Todos os militares estavam dispostos a contribuir com tal ajuda e, por aqueles dias, o comandante da Companhia mandou reunir as tropas em formatura. A razão pela qual o fazia, ninguém sabia… mas todos apontamos para o discurso da dádiva, e formamos com a mente aberta para contribuirmos com uma parte do nosso pré.

O capitão surgiu envergando farda de gala, cordões dourados pendendo do ombro e presos no peito, calçando botas de cano alto reluzentes de graxa. Passou revista às tropas (não fomos avisados de tal inspecção, e em acampamento no mato não havia razão para estarmos apresentáveis, bonitos, bem penteados e bem cheirosos!) e castigou com carecadas quem tinha nódoas na farda, camisas engelhadas, botas sem graxa, cabelo comprido e barba por aparar! Todos os militares da companhia estavam em falta com alguma das “alíneas” observadas… foi um rapar de cabelo geral… e tudo isto num momento dramático para o qual estávamos preparados para ajudar… mas a ajuda não nos foi pedida!…

A falta de sensibilidade de então, não era só do governo ditatorial e da censura que calava a dimensão da tragédia… também passava pelos militares de patente… como se viu!…

- Publicidade -spot_img

Mais artigos

- Publicidade -spot_img

Artigos mais recentes

- Publicidade -spot_img