A Filosofia como Pilar da Política
Desde logo, na revista MAGAZINE CULTURAL do El Corte Inglés, onde decorre este curso, é nos dada, em jeito de introdução, uma reflexão sobre a importância da filosofia na organização política através de uma citação de André Comte-Sponville: “Para que pode servir a filosofia contemporânea? Para viver juntos da melhor maneira: no debate racional, sem o qual não existe democracia, na amizade, sem a qual não existe felicidade, finalmente na aceitação, sem a qual não existe serenidade.”
Ancorado na figura de dez pensadores incontornáveis, David Erlich procura destacar as tensões que moldaram a política ao longo da história, que, nesta primeira parte, vão desde as ideias utópicas de Platão até à pragmática abordagem de Maquiavel.
Platão e a Utopia da República
Platão surge como um dos primeiros grandes teóricos da política ocidental. A sua obra “A República” apresenta uma visão idealista da sociedade, defendendo um governo dos sábios. “Platão funda o género utópico com ‘A República’. Nessa obra, defende que a cidade ideal deveria ser governada por filósofos, os únicos capazes de alcançar o Bem supremo”, referiu David Erlich.
A famosa Alegoria da Caverna foi lida e analisada durante a sessão, destacando a visão platónica sobre a realidade e o conhecimento. Os participantes foram convidados a encenar a passagem, trazendo à vida a interação entre Sócrates e Glauco.
A cidade ideal platónica está estruturada em três classes: os governantes-filósofos, os guerreiros e os trabalhadores. Platão enfatiza a educação como meio para alcançar a justiça, garantindo que cada cidadão desempenha a função para a qual tem mais aptidão. Esse conceito de especialização reflete-se no seu modelo de governo, no qual apenas aqueles com conhecimento verdadeiro devem tomar decisões políticas.
Aristóteles e a Política como Ciência
Aristóteles, discípulo de Platão, apresenta uma visão mais pragmática. A sua obra “Política” classifica os regimes e propõe uma análise empírica da organização das cidades. “Se Platão é o pai da filosofia política, Aristóteles é o pai da ciência política. Ele analisa as constituições das cidades e estabelece critérios racionais para avaliar os diferentes regimes”, afirmou o professor.
A distinção entre o governo de um, de poucos e de muitos foi debatida, bem como a noção aristotélica de virtude e cidadania. Aristóteles argumenta que o governo ideal deve encontrar um equilíbrio entre os interesses coletivos e individuais, distinguindo entre monarquia, aristocracia e democracia. Apesar de valorizar a participação política, Aristóteles alerta para os perigos da demagogia e da tirania.
Além disso, a sua ideia de “homem como animal político” reforça a necessidade da polis como espaço essencial para o florescimento humano. A política, segundo Aristóteles, deve servir o bem comum e não os interesses particulares.
A Influência de Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino
A transição para a Idade Média trouxe a influência do pensamento cristão na política. Santo Agostinho introduziu a ideia de uma cidade terrena imperfeita, em contraste com a cidade divina. “Agostinho vê o mundo como um local de passagem. A política não pode criar um paraíso na Terra, pois a verdadeira justiça só existe na cidade de Deus”, explicou David Erlich.
Já Tomás de Aquino conciliou Aristóteles com a teologia cristã, defendendo a importância da lei natural na organização da sociedade. O pensamento tomista coloca Deus como fonte última de autoridade, mas reconhece a necessidade de estruturas políticas organizadas de forma racional.
Ambos os pensadores influenciaram a conceção do governo medieval, introduzindo a ideia de um poder legitimado pela fé, mas que também deveria respeitar princípios racionais e éticos.
Thomas More e a Utopia Moderna
O conceito de utopia ganhou uma nova forma com Thomas More, cuja obra homónima descreve uma sociedade ideal. “Se Platão imaginou uma cidade perfeita governada por filósofos, Thomas More projetou uma ilha onde a harmonia e a racionalidade determinam a vida em comunidade”, destacou David Erlich.
Thomas More, no entanto, não via a sua “Utopia” como um plano político viável, mas antes como uma crítica à sua própria sociedade. A sua proposta era uma resposta à corrupção e desigualdade da Inglaterra renascentista, questionando a possibilidade de um sistema alternativo baseado na igualdade e na ausência de propriedade privada.
A influência de More estendeu-se até aos debates modernos sobre socialismo e comunismo, mostrando a perenidade da questão utópica na política.
Maquiavel e a Realpolitik
Esta primeira parte do curso culmina com Nicolau Maquiavel, cuja obra “O Príncipe” rompe com a tradição idealista. “Maquiavel separa a política da moral. Para ele, o governante deve focar-se na eficácia, e não em ideais inalcançáveis.”, afirmou o também escritor.
A célebre máxima “os fins justificam os meios” foi debatida, com ênfase na influência de Maquiavel no pensamento político moderno. A sua visão realista da política enfatiza a necessidade de adaptação às circunstâncias e o uso estratégico do poder. Em oposição à tradição cristã, Maquiavel argumenta que a política deve ser avaliada pelos seus resultados e não por princípios morais absolutos.
A sua obra influenciou profundamente líderes ao longo da história, sendo frequentemente citada em contextos de governança pragmática e estratégias de poder.
Entre Utopia e Realismo
O curso “A Pólis entre 10 Filósofos”, nesta primeira metade, proporcionou uma viagem intelectual pela história da filosofia política. Desde a utopia de Platão à realpolitik de Maquiavel, ficou patente a complexidade do pensamento político e a sua relevância para os desafios contemporâneos. A análise dos filósofos abordados permitiu compreender como as ideias moldaram sociedades e continuam a influenciar a política global.
Ao longo das sessões, os participantes irão poder refletir sobre os valores que sustentam as sociedades, as diferentes conceções de justiça e os desafios que cada modelo político apresenta. Este curso reafirma a necessidade do pensamento crítico na política, num momento em que as democracias enfrentam novos desafios e a filosofia continua a ser uma ferramenta indispensável para compreender e transformar o mundo.
Na peça da próxima semana, parte II, iremos refletir sobre o pensamento político dos três autores contratualistas, Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau.
OC/RPC
Editor Adjunto