Esta é uma perturbação que se carateriza pela incapacidade ou dificuldade de controlar o impulso de ingerir grandes quantidades de comida, num curto espaço de tempo. Reconhecer o problema e procurar ajuda especializada são passos decisivos para quem pretende alcançar a recuperação, tal como demonstram os três testemunhos ouvidos por O CIDADÃO – e que, mesmo sob anonimato, dispuseram-se a falar para que a sua mensagem chegue a quem ainda sofre em silêncio.
O remorso despoletado pelo descontrolo
Atualmente com 29 anos, M. C. recorda-se de sempre ter tido uma relação complicada com a comida. “Desde criança, usava a comida como consolo. Se estava triste, comia; se estava feliz, comia ainda mais. A comida era uma espécie de refúgio, algo que me fazia sentir segura, mesmo que por breves momentos”, relembra.
Este hábito intensificou-se durante a pandemia, quando as crises de ansiedade se tornaram mais frequentes. “No início, pensei que eram períodos de stress, mas rapidamente perdi o controlo. Acordava a meio da noite e comia o que encontrava. Não tinha critério, era automático. E, logo depois, vinha a culpa e a vergonha por não conseguir parar“, confessa.
M. C. explica que o sentimento de impotência era constante: “sabia que estava a fazer mal, que aquilo não ia resolver os meus problemas. Mas não conseguia parar. Depois, tudo piorava porque a sensação de vazio tornava-se angustiante”. A dificuldade em quebrar este círculo vicioso agravou-se pela pressão e pelo ressentimento. “Era como um ciclo sem fim: comia, sentia-me culpada, prometia parar, mas na próxima crise fazia tudo de novo. Invadia-me a sensação de fracasso por não conseguir controlar os meus impulsos”.
Perante a situação, M. C. decidiu procurar ajuda psicológica. “Foi um passo difícil. Não queria admitir que precisava de ajuda, mas sabia que sozinha não ia conseguir”. Hoje, está em tratamento e não tem ilusões acerca da complexidade do problema: “é um processo longo. Estou a aprender a lidar com as minhas emoções. A terapia tem-me ajudado a perceber que comer compulsivamente não vai resolver os meus problemas. Aos poucos, estou a libertar-me da relação tóxica com a comida”.
M. C. deixa ainda uma reflexão: “o que mais me ajudou a mudar foi entender que a comida não pode substituir o que sentimos. Precisamos de aprender a lidar com as emoções de forma saudável. Não é fácil, mas é possível. Ainda tenho uma longa batalha pela frente, mas hoje, pelo menos, sei que estou no caminho certo”.
A humilhação de comer às escondidas
J. L., 47 anos. Recorda que a relação conflituosa com o seu corpo não é de agora. “Na adolescência, comecei a ganhar peso e ouvia constantemente comentários negativos acerca disso. Aos poucos, comer tornou-se a minha forma de fugir às críticas. A situação acabou por escapar ao meu controlo”.
Apesar de praticar desporto regularmente, J. L. confessa que a compulsão alimentar continuou a ser um desafio: “sempre fui uma pessoa ativa. Corro três vezes por semana e vou ao ginásio com frequência. A prática de exercício ajuda-me a aliviar o stress, mas mesmo assim não conseguia controlar o impulso de comer. Era frustrante, porque, apesar de todo o esforço físico, o meu peso não diminuía. De início até tive resultados visíveis, mas depois confrontei-me com oscilações do peso e isso foi desmotivador”.
Adianta também que as suas crises de compulsão desencadearam comportamentos secretos. “Comprava grandes quantidades de comida e escondia-as em casa. Esperava que todos fossem dormir para começar a comer. Por instantes, sentia que podia escapar à realidade, mas depois a culpa e a humilhação tomavam conta de mim”.
A decisão de procurar ajuda surgiu quando compreendeu que a compulsão estava a prejudicar gravemente a sua saúde física e mental: “sentia-me constantemente cansado e sem energia. E, por mais exercício que fizesse, o meu corpo não acompanhava o esforço”. Hoje, J. L. faz psicoterapia e segue à risca um plano nutricional personalizado. “É uma luta permanente. Sei que não posso ceder. O acompanhamento psicológico tem sido essencial para não deslizar”, sublinha.
A aceitação do problema
A. C. tem 38 anos. Descobriu que sofria de compulsão alimentar decorridos “demasiados anos” sem perceber o que realmente se passava consigo. “Achava que era simplesmente apetite. Nada de anormal. Quando me apercebi que não conseguia parar de comer, mesmo quando já estava cheia, comecei a recear que havia algo de errado comigo”, conta.
Realça que, durante anos, tentou diferentes dietas e regimes alimentares. Todos eles sem sucesso: “estava constantemente à procura da solução mágica para emagrecer. Passava dias inteiros a tentar controlar o que comia, mas depois, numa fração de minutos, comia tudo o que encontrava. No fim, a frustração era enorme e pesava-me na consciência”.
Após consultar um nutricionista, A. C. foi encaminhada para um psiquiatra, que lhe diagnosticou transtorno de compulsão alimentar. “Foi um alívio saber que aquilo que eu sentia era uma doença e não uma falha de caráter. Aceitei que estava doente. Comecei a tomar medicação que me ajudou a controlar a impulsividade e a ansiedade, e a fazer sessões de terapia cognitivo-comportamental. Posso dizer que, finalmente, estou a conseguir lidar muito melhor com a minha compulsão, sem ter raiva de mim própria”.
Embora ainda enfrente alguns desafios, A. C. já consegue identificar os gatilhos que desencadeiam as crises compulsivas: “se não consigo concentrar-me em algo que esteja a fazer, já sei que tipo de pensamentos vão surgir de seguida. Procuro que eles nem cheguem a entrar na minha mente. Perceber que a comida não é minha inimiga, mas que a forma como eu a utilizava é que estava errada, mudou tudo. Antes, achava que era fraca por não conseguir controlar-me. Agora, percebo que estava a lidar com um problema de saúde mental. Isso facilita a minha recuperação”.
A. C. menciona que o seu processo tem sido gradual e que ainda lida pensamentos obsessivos. “Não é um caminho linear. Há dias em que tenho vontade de comer sem parar, mas agora consigo colocar um travão, respirar e pensar no que realmente está a acontecer comigo. Já não me sinto refém desses impulsos. Para mim, isso é uma grande conquista”.
Acrescenta que foi terapêutico conhecer outras pessoas que passam pelo mesmo problema: “é transformador ter a possibilidade de partilhar com aqueles que me compreendem. Percebi que não estou sozinha nesta luta. Isso deu-me muita força para não baixar os braços e para não me render à tentação de comer só por comer”.
A perspectiva de um especialista
A propósito destes testemunhos que dão conta do sofrimento associado à compulsão alimentar, Luís Santos, psicólogo clínico, considera que “adiar o reconhecimento da existência do problema só o agrava. A manutenção e o aumento da frustração, impotência, redução drástica da autoestima, aumenta o risco de aparecimento de doenças mentais e físicas, deterioração da saúde e da qualidade de vida em geral”.
Aceitar que se tem um problema (no caso, compulsão alimentar) assusta porque implica “baixar as defesas, lançar-se no desconhecido e entregar-se ao escrutínio do outro”. Por isso, são muitas as dúvidas que aumentam o receio de procurar ajuda. Mas, diz o especialista, “a boa noticia é que há excelentes profissionais que têm ajudado inúmeras pessoas a ultrapassar os seus receios e a descobrir o caminho do seu bem-estar”.
Apesar da maior consciencialização por parte da população e da credibilização da intervenção psicológica em geral, ainda há um “tabu na procura dos serviços de Psicologia como abordagem preventiva e tratamento da compulsão alimentar, por se considerar que é mais uma questão física (intervenção médica) do que psicológica”.
Em síntese, a pessoa acaba por “sofrer em silêncio porque não percebe o que se passa consigo, tem vergonha do que sente, do que é, tem medo de não ser compreendida e aceite, isolando-se cada vez mais, aumentando o seu sofrimento. O desafio é tornar o incompreensível no compreensível, no inconsciente em consciente, tornando mais claro o que se apresenta no escuro da nossa mente. É um processo lento no tempo”. E este é outro desafio: “aceitar e respeitar o ritmo e evolução, caminhando para uma maior estabilidade emocional e a maior controlo dos comportamentos”, esclarece o psicólogo.
Luís Santos está, de resto, envolvido num programa inspirado em diferentes abordagens (nas quais se inclui a terapia cognitivo-comportamental), cujo objetivo passa pela “descoberta da matriz emocional, pela consciencialização do padrão comportamental disfuncional, pela aceitação e pelo respeito dos limites”. O projeto dá pelo nome de Pensar Magro (site: pensarmagro.pt) e teve como base a evidência de que existem “padrões comportamentais que, frequentemente, impedem as pessoas de completarem os seus planos alimentares, mesmo quando delineados e supervisionados por médicos”. Ou seja, surge o risco de “retornar a hábitos antigos e de abandonar os objetivos construídos (i.e., emagrecer, manter o peso, diferenciar a culpa da responsabilidade associadas ao excesso de peso, promover a autoaceitação e o amor próprio)”, elucida o psicólogo.
Jornalista