10.1 C
Porto
18.8 C
Lisboa
18.9 C
Faro
Sexta-feira, Setembro 26, 2025

A página 33

Mais artigos

A chuva miúda caía sobre a cidade, tingindo de prata as ruas estreitas. Entrara na livraria que conhecia desde a adolescência; conhecia cada canto, cada estante e até o cheiro dos livros. Estava tudo nos seus lugares. Tinha por esta livraria uma admiração curiosa, talvez pela quantidade de relógios pousados, meticulosamente, em mesas e estantes – todos com horas exatas – ou por tudo ali lhe parecer intemporal. Neste lugar, tão especial, vivera muitas viagens e conhecera outros mundos.

Lá dentro, na penumbra entrecortada pela luz fosca do outono, os livros sussurravam histórias a quem soubesse escutá-las. Marta, uma jovem estudante de Literatura, costumava refugiar-se ali entre os estuques rendilhados, os vitrais coloridos e o cheiro de papel antigo.

Procurava um livro raro para a sua tese de mestrado – uma edição esquecida de Fernando Pessoa, supostamente perdida desde os anos 40. Vasculhava prateleiras, guiada por uma intuição estranha, como se a livraria lhe estivesse a apontar o caminho.

Foi então que o viu.

Não era um livro em destaque, nem sequer catalogado. Estava escondido por detrás de um exemplar desgastado de Eça de Queirós. O título, gravado em letras desbotadas: “O Livro das Sombras Invisíveis”. Um nome que não reconhecia. Abriu-o com cuidado. As páginas estavam em branco. Todas, menos uma.

Na página 33, havia uma única frase escrita à mão: “Quando leres estas palavras, o tempo deixará de ser linear.”

Marta sorriu, achando que era apenas uma brincadeira deixada por algum visitante criativo. Mas quando ergueu os olhos, algo estava diferente. A luz da livraria tornara-se mais âmbar, as vozes tinham desaparecido, e os relógios… pararam.

Percorrendo a galeria superior, viu figuras estranhas: leitores com roupas de outros séculos, discutindo versos de Camões e cartas de amor de Florbela Espanca. Pareciam não reparar nela. Era como se estivesse entre fantasmas – ou memórias vivas da literatura.

Quase se perdia num tempo onde se estava a sentir quase bem…

Um velho livreiro, de olhos cinzentos e fala pausada, aproximou-se:

Encontraste a página. Podes ficar… ou devolver o livro ao seu esconderijo. Mas lembra-te: cada leitura tem um preço.

Marta hesitou. Aquela livraria que a levara a um tempo mágico, fora do tempo, era tudo o que a fazia feliz e amava. Mas sabia que, se ficasse, deixaria para trás a sua vida no mundo real deste mundo em contramão.

Suspirou e fechou o livro, acariciando-o, como se acaricia uma memória.

Voltou a escondê-lo onde o encontrara. Quando desceu os degraus da livraria, as vozes regressaram, o tempo retomou o seu curso. Eram seis horas da tarde em todos os relógios.

Escurecera e o céu chuvoso continuava igual. Palmilhou a cidade contornando todas as esquinas que a levariam à estação de comboios.

O vento, numa dança aprazível, despia lentamente o corpo esguio das árvores.

Nunca mais encontrou o livro. Mas às vezes, ao passar pela livraria, Marta sente um arrepio e ouve, por um breve instante, as páginas invisíveis a voltarem-se sozinhas e a chamarem por ela.

- Publicidade -spot_img
- Publicidade -spot_img

Artigos mais recentes

- Publicidade -spot_img