José Maria de Eça de Queiroz, um dos nossos maiores escritores, teve esta semana honras de Panteão Nacional. Não sendo queirosiana nem da área da literatura, assumo-me bibliófila e, portanto, leitora e admiradora do escritor. Nessa condição assumo esta crónica através da qual partilho a oportunidade da visita à “Casa de Tormes”, Casa situada na Quinta de Vila Nova, sede da Fundação Eça de Queiroz, no sábado, dia 4.
Não cheguei a Santa Cruz do Douro de comboio, tão pouco subi numa “égua lazarenta” ou num “jumento branco”, a estrada ziguezagueante foi feita na comodidade do carro, coisas próprias da “civilização” e da “modernidade” dos nossos dias. Mas, ainda assim, um caminho sinuoso, de curvas e contracurvas. A estrada continua a serpentear serras e a paisagem permanece deslumbrante. O rio ao fundo, os socalcos cheios de vinhedos dormentes pelo frio, e os pomares carregados de laranjas, entre oliveiras, castanheiros e esguios pinheiros. Nas estreitas bermas assomam mimosas e tímidas casas. Entre as leituras, a conversa e a admiração, só os enjoos impediram a repetição dos murmúrios –“Ah! que Beleza! Ah! que beleza!”. E, não, também não chegámos maravilhados, antes aliviados.
Chegámos à quinta pelo velho “Caminho de Jacinto” como indicado na placa, numa tarde bucólica, cinzenta e fria. Quis voltar a Tormes enquanto a “magia” ainda alimentava o imaginário! Com as palavras de Queiroz a ecoar na mente: “Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado”. É desta forma que começa “Civilização”, e quem conhece o conto “civilização” que serviu de esboço à sua obra póstuma “A Cidade e as Serras” conhece a Casa de Tormes. Mas esse é o nome literário, o local chama-se Quinta da Vila Nova.
Eça nunca viveu na casa, e conheceu-a de forma muito diferente do que é agora. De acordo com as referências e cartas, Eça visitou-a quatro vezes. E da primeira vez achou-a tão feia e inabitável, que, só o seu sentido de humor e mestria irónica nos fariam rir com a descrição feita: “o meu pobre Jacinto contemplou, enfim, as salas do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham enegrecido, e vazias (…). Uma descrição que se vai alongando, fazendo do “Palácio”, “casa ancestral dos Jacintos” um hino à decrepidez. Eça terá nessas visitas admirado e enaltecido a vida simples do campo, a beleza das paisagens durienses, terá tirado as notas que guardaria no seu arquivo para posteriormente escrever as suas obras. Mas, achou sempre a casa horrorosa e sem condições de habitabilidade, talvez por isso mesmo, a tenha de imediato hipotecado. A casa e a quinta calharam em herança à sua mulher Emília de Castro Pamplona, a mulher que conhecera através de um dos seus irmãos, no Solar dos Condes de Resende, em Canelas.
Eça de Queirós casou com Emília de Castro Pamplona Resende em 1886 na capela da Quinta de Santo Ovídio no Porto. Teve por padrinho o seu amigo Ramalho Ortigão, aliás amigo que conhecera na sua juventude quando estudava como interno no Colégio da Lapa. O mesmo amigo, que reencontrou em Lisboa e com quem publicou “As Farpas” – Crónica mensal da Política, das letras e dos Costumes, até à sua partida para Havana onde viria a ser Cônsul. Crónicas que se tornaram influentes da vida política da altura, dada a acutilante crítica que era feita aos políticos e governantes da época.
Voltemos a Tormes. Quando a sua esposa Emília de Castro herdou a quinta e a casa por falecimento dos pais, os condes de Resende, o escritor saiu de Paris onde era cônsul e rumou a Santa Cruz do Douro para conhecer a propriedade.
A entrada na casa surpreende pela sua escuridão e austeridade. É um hall frio quase sem luz. Desta vez, mais recheado, pois, abaixo do busto do escritor exibiam-se nas prateleiras as primeiras edições da maioria das suas obras, até então, guardadas pela família longe do público. E um dos seus desenhos originais, que este escritor, soube utilizar a pena ou o carvão para desenhar, e bem! Uma faceta de desenhador, desconhecida até há alguns anos. Queiroz continua a surpreender-nos. Em outra sala da casa, também nos deparámos com o original de uma das suas “autocaricaturas” onde se personifica como uma cegonha. Numa liberdade que atesta a sua admiração pelas aves. As aves que tantas vezes retratou nos seus escritos.
Ainda no hall, a um canto, a cadeira de Jacinto, “a sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brasões “, tal como a descreveu o nosso escritor em “Civilização”. Foi seguindo esse conto que revisitei Tormes. Nos contos, os escritores podem fruir o prazer da própria escrita. No final do séc. XIX, o conto emergia como tendência moderna. E Eça, atento e astuto, explorou tal prazer em diversos contos.
Mas é a biblioteca, a minha divisão preferida da casa. Não só pela sua função, também porque aí se encontra a sua alta secretária, aquela em que Eça escrevia em pé. Com a descrição que dele nos deu o seu fiel amigo agrónomo, Batalha Reis: “uma figura muito magra, muito esguia, muito encurvada, de pescoço muito alto, cabeça pequena e aguda que se mostrava inteiramente desenhada a preto intenso e amarelo desmaiado”, consigo imaginar Eça, não com o chapéu de copa alta, mas sim de pijama, mão no monóculo e outra na caneta, deleitando-se ali, por longas horas, a escrever.
E, sobretudo porque é nesta divisão que se encontram a maioria das fotografias reveladoras da vida íntima de Eça e seus familiares. Na zona central numa mesa ladeada por dois sofás de pele, há uma das mais conhecidas fotografias de Eça e Emília. E ao seu lado, duas fotografias centrais na história de Tormes, a da filha do escritor, Maria com o seu filho Manuel Pedro ao colo e a do casamento de Manuel Pedro com Maria da Graça. Ambas tiradas nesta casa.
Foi Maria Eça de Queiroz de Castro, a filha do escritor quem veio a habitar a casa de Tormes. Em 1916, depois de casar veio morar para Tormes e lá nasceram os seus dois filhos. Porém, a filha morreu ainda criança e, foi o filho Manuel Pedro Benedito de Castro que, aí cresceu e mais tarde casou com Maria da Graça Salema de Castro. A neta por afinidade de Eça foi a mulher que fundou e presidiu à Fundação Eça de Queirós até 2015.
Maria, a filha mais velha de Eça, depois de se ter instalado na quinta de Santa Cruz do Douro dedicou-se à divulgação da obra do pai. Usou o dinheiro obtido com os direitos de autor do pai, primeiro para a resgatar da hipoteca em que Eça a deixara, e, posteriormente para ampliar e renovar a casa. Foi ela quem para ali transferiu uma parte dos bens vindos da residência parisiense e, que se encontravam na Granja.
Após a morte de Eça de Queiroz em Paris em 1900, Emília regressou a Portugal com os quatro filhos e, a dada altura foi morar para a Granja, numa casa arrendada à família Ramos Pinto, a mesma que também a família de Sophia de Mello Breyner por vezes arrendava. A casa da Granja foi posteriormente comprada por outro filho do escritor, o seu homónimo José Maria Eça de Queirós. É lamentável que a mesma tenha sido demolida e já não exista.
Parte do recheio da casa de Neuilly, a residência parisiense do escritor e família, perdeu-se com o naufrágio do Navio “Santo André”, quando este vinha de França com os pertences da família de Eça. Felizmente, Emília enviou alguns dos bens por terra, os mais importantes, para além da escrivaninha muitos manuscritos ainda por publicar, alguns entregues a Ramalho Ortigão que procurou formas de os publicar, outras publicações foram da responsabilidade do seu filho homónimo.
Certo, é que a obra e os bens de Eça, tal como hoje os conhecemos, chegou aos nossos dias graças aos seus familiares e às suas amizades, por mais estranhas ou convenientes que possam ter parecido. Eça era admirado pela sua inteligência, cultura e escrita. Era respeitado como diplomata, adorado até em Havana pelo seu trabalho humanista em prole da melhoria das condições de vida e dos direitos dos trabalhadores chineses nos campos de cana-de-açúcar.
E as mulheres, descendentes e herdeiras do escritor tiveram papel essencial neste enredo. Em 1970, após a morte da sua filha, até aí era a única filha viva do escritor, começaram as diligências para a criação da Fundação Eça de Queiroz como se pode ler no site da mesma “os seus herdeiros, eu própria, Maria da Graça Salema de Castro e o meu marido, Manuel Pedro Benedito de Castro, iniciámos o processo com vista à constituição da FUNDAÇÃO EÇA DE QUEIROZ. Pertencendo-nos 2/3 dos bens deixados por Eça de Queiroz, para além da Quinta e Casa de Vila Nova em Santa Cruz do Douro (TORMES), pensámos doar estes bens a uma fundação a instituir em vida, a qual teria, como principais objectivos, a continuação e o enquadramento institucional da divulgação e do estudo da obra de Eça de Queiroz.” A Fundação só viria a ser constituída em 1990. Um ano depois, da transladação dos restos mortais do escritor para o cemitério de Santa Cruz do Douro. O cemitério que se vê do caminho que dá acesso à quinta e onde repousam sua filha e netos Manuel e Mª da Graça.
Em 1989, a Câmara de Lisboa informou a família do escritor, que o Jazigo dos Condes de Resende ia ser vendido. Nessa altura, o então Presidente da República Mário Soares terá apresentado às três netas vivas do escritor, a sua intenção de propor honras de Panteão Nacional para Eça de Queiroz, por unanimidade, as netas recusaram e decidiram a trasladação para Santa Cruz do Douro. Trinta anos depois, o partido socialista aprovou por unanimidade, em plenário, a 15 de janeiro de 2021 a trasladação do escritor para o Panteão Nacional. Seguiu-se uma contenda judicial, pois, seis dos 22 bisnetos opuseram-se à decisão. Em vão. Esta semana os restos mortais do escritor saíram da pacatez do Douro para o Panteão Nacional.
Mas as memórias mais vivas, o lugar de afetos e o imaginário do escritor permanecerão na casa de Tormes.
Na adolescência deliciei-me com a malícia de “O crime do Padre Amaro”. De início não gostei de “Os Maias” quando no 11º ano fui obrigada a lê-lo, porém, durante os meus estudos em Lisboa tive oportunidade de percorrer muitos dos seus trajetos, amei o bairro Alto, Alfama e a Mouraria. Emocionei-me com a história da Tragédia da Rua das Flores, viajei até Malta e ao Egito e, no regresso reli com outro olhar “A Relíquia”. Mas foi com a descrição da ceia que Zé Brás serviu em Tormes, que chorei a rir. A Ceia a que se resignou o pobre Jacinto, sem as suas trinta e sete malas, sem os seus serviços de prata, sem os seus copos, sem o seu Schopenhauer. O supercivilizado Jacinto “lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta… E sorriu, murmurando com espanto: Está bom! Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já arredando a broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada, que transbordava de arroz com favas.”
Se o restaurante estivesse aberto não teria saído de Tormes sem o repasto queirosiano. Mas no regresso ainda me ria com as pormenorizadas descrições daquela ceia. Um verdadeiro «Banquete de Platão» com vinho divinal servido em canecas verdes! Ao ponto de não ter terminado o fim-de-semana, sem comer uma canja que quase “rescendia”. À falta das favas, por não ser tempo delas ficou adiado o seu arroz… Que bela viagem! Só um escritor tão grande como Eça nos proporciona estas viagens com tão ricas memórias. Vou reler “As cidades e as Serras” para fazer perdurar a sua atualidade.
Maria João Coelho
Colaboradora/filósofa
Colaboradora/Filósofa